Há exatos 30 anos, a Organização Mundial da Saúde (OMS) deixava de classificar a homossexualidade como uma patologia, atendendo reivindicações feitas por anos pelo movimento LGBT+. Marcante, a mudança acabou dando origem ao Dia Internacional contra a LGBTfobia, uma data de conscientização sobre a luta por direitos ainda hoje exercida pela comunidade.
Trinta anos depois, as conquistas da população LGBT+ no Brasil abaixo listadas podem não ser muitas, mas sem dúvidas, são significativas. Infelizmente, porém, e refletindo o posicionamento conservador de nossos governantes, a maioria não partiu de iniciativas do Legislativo, mas sim do Judiciário.
“A aprovação de uma lei é sempre melhor, precisamente por dar maior segurança, por não dependermos mais da composição concreta do Supremo Tribunal Federal para termos nossa cidadania respeitada. Contudo, o Congresso Nacional tem se mostrado completamente homotransfóbico, na medida em que se recusa a aprovar leis que protejam expressamente direitos da população LGBTI+”, reflete Pauto Iotti, doutor em Direito Constitucional e Diretor-Presidente do Grupo de Advogados pela Diversidade Sexual e de Gênero (GADvS), que foi autor das duas ações da criminalização da homofobia julgadas pelo STF.
Para a Erika Hilton, co-deputada estadual em São Paulo pelo mandato coletivo da Bancada Ativista (PSOL), esses 30 anos são apenas o começo. “Temos muitos passos para conquistar a inserção no mercado de trabalho formal, o direito à própria identidade, ao afeto, à família, à religiosidade e a um estado não violento. O próximo é de ser pertencente e deixar de vivenciar o apartheid social que experimentamos todos os dias”, afirma a parlamentar.
E a melhor forma de furar a barreira conservadora nos três poderes é com a inserção “das pessoas LGBT+ de fato na política para que elas pressionem e entendam que temos capacidade de darmos o tom”, considera a ativista dos Direitos Humanos, transvestigênere e negra.
Tanto a co-deputada como o advogado constitucionalista mostram como a articulação representativa dessas conquistas, ou seja, pensadas e elaboradas por pessoas LGBT+ impactam na assertividade das leis, por exemplo.
Sobre as ações sobre a criminalização da homofobia, Iotti relembra: “Das cinco pessoas LGBTI+ que falaram no dia do julgamento, tivemos três homens gays (eu entre eles), uma mulher lésbica e uma mulher trans. Dessas pessoas, só a advogada lésbica foi sem o meu intermédio, as outras foram pessoas que eu pedi para elaborarem petições e fazerem sustentações orais. Lugar de fala e representatividade importam, é importante que o STF ouça as teses diretamente dos grupos vulneráveis que solicitam sua proteção”, completou.
Já Erika revela que sua presença e o conteúdo a ser dito por ela são alvos constantes no dentro da Assembleia Legislativa. “Enfrento desafios muito particulares da minha existência em um lugar tão conservador e retrogrado, que ataca constantemente direto à vida das pessoas LGBTs, negras e pobres e é tudo isso que o meu corpo e essa mandata representa. Mas conseguir avançar com as pautas e despertar a atenção dos parlamentares para a urgência dos nossos debates é o maior desafio”, afirma.
1997 – Redesignação sexual
Apesar de já serem realizadas no Brasil desde 1971, as cirurgias de redesignação sexual só passaram a ser consideradas legais pelo Conselho Federal de Medicina (CMF) em 1997. Publicada em setembro daquele ano, a resolução autorizava “a título experimental, a realização de cirurgia de transgenitalização do tipo neocolpovulvoplastia, neofaloplastia e ou procedimentos complementares” para o tratamento do que, na época, ainda era chamado de transexualismo.
Para submeter-se ao procedimento, era preciso que o paciente tivesse no mínimo 21 anos e passasse por dois anos de acompanhamento com uma equipe multidisciplinar constituída por médico-psiquiatra, cirurgião, psicólogo e assistente social. A resolução foi revista outras duas vezes em 2002 e 2010 e, a partir de janeiro deste ano passou a ser permitida a realização da cirurgia a partir dos 18 anos, enquanto que a idade mínima para o início das terapias hormonais passou a ser aos 16. No SUS, a redesignação é oferecida desde 2008.
2009 – Nome social
Em agosto, o SUS, através da Portaria nº 1.820/2009, se tornou o primeiro órgão nacional a disponibilizar em seus documentos um campo para registro do nome social, independente do que poderia constar no registro civil. Aos poucos, outras instituições e empresas passaram a adotar a medida, como Ministério da Educação que, a partir de 2013, permitiu o uso do nome social no Enem e, em 2018, em registros escolares da educação básica.
A estrada em busca dos direitos é muito longa, a gente tem conquistado alguns, mas ainda falta coisa para garantirmos nossa dignidade e pertencimento à sociedade.
2010 – Adoção homoafetiva
A primeira vez que um casal homossexual conseguiu uma autorização judicial para adotar uma criança foi em 2006, na cidade de Catanduva, São Paulo. Entretanto, outros quatro anos se passaram antes que o Supremo Tribunal de Justiça (STJ) decidisse favoravelmente à inclusão do nome das duas mães na certidão de nascimento de duas crianças que haviam sido adotadas por uma delas, aproveitando a brecha da lei que permite que pessoas solteiras adotem.
Em 2015 foi a vez do Supremo Tribunal Federal (STF) se posicionar de modo inédito, após o Ministério Público do Paraná tentar limitar um casal gay a adotar apenas crianças acima de 12 anos, com a justificativa de que somente a partir dessa idade a criança poderia opinar sobre o pedido. Depois de uma série de recursos, o caso foi levado ao STF, onde ficou reconhecido que a união homoafetiva representa um núcleo familiar como qualquer outro, sendo a limitação de idade inválida.
2011 – União civil
Também foi o STF a julgar e reconhecer a união estável entre pessoas do mesmo sexo, a partir da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 4277 e da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 132. A primeira buscava o reconhecimento da união homoafetiva como uma entidade familiar e o estendimento dos direitos e deveres das uniões estáveis entre companheiros heterossexuais para aquelas entre homossexuais. Já a ADPF 132 alegava que, ao não reconhecer a união homoafetiva, estaria se ferindo e contrariando os direitos de igualdade, liberdade e dignidade humana previstos na Constituição Federal. Em 2013, os cartórios passaram a ser autorizados a registrar casamentos civis homossexuais por meio de uma resolução do Conselho Nacional de Justiça.
É preciso que a sociedade aprenda a respeitar (como iguais) ou, no mínimo, tolerar (não discriminando nem agredindo física ou moralmente) as pessoas LGBTI+.
2018 – Mudança no registro civil
9 anos após os primeiros passos no reconhecimento do nome social, o STF autorizou, em decisão unânime, transexuais a mudarem de nome e gênero no registro civil mesmo que não tenham passado pela cirurgia de redesignação sexual. De acordo com regras da Corregedoria do Conselho Nacional de Justiça, a mudança pode ser feita em qualquer cartório sem que seja necessária apresentação de uma autorização judicial, exceto para menores de 18 anos.
2018 – Despatologização da transexualidade
Ainda em 2018, a OMS retirou a transexualidade da lista de transtornos mentais englobados pela Classificação Internacional de Doenças (CID). Classificada como uma “incongruência de gênero”, ela passou a integrar um capítulo destinado para as condições relacionadas à saúde sexual e foi definida como “uma marcante e persistente incongruência entre o gênero experimentado pelo indivíduo e o sexo a ele atribuído”. Ainda segundo a CID, comportamento e preferências das variantes de gênero, por si só, não são uma base para atribuir os diagnósticos nesse grupo.
2019 – Criminalização da LGBTfobia
Após três meses de debate no STF, foi aprovada uma decisão que tornou crime a discriminação por motivos de orientação sexual e identidade de gênero. Assim, atos discriminatórios enquadrados nessas razões passam a ser punidos pela Lei de Racismo (7716/89), do mesmo modo que aqueles motivados por raça, cor, religião, procedência nacional ou etnia. Em termos práticos, Paulo Iotti explica que, “com o reconhecimento da homotransfobia como crime de racismo pelo STF, os Estados podem se sentir mais estimulados a realizar levantamentos das violências (físicas ou morais) praticados em razão da orientação sexual e da identidade de gênero das vítimas.” No caso de desdém do Estado para o levantamento de tais dados, se comprovaria “que o Brasil é institucionalmente homotransfóbico, ou seja, ainda que alegue não ter intenção de discriminar, tem ações e omissões que têm um efeito discriminatório e isso é inconteste”.
O advogado criminalista reitera que a criminalização é uma medida de curto prazo, mas que a educação inclusiva e emancipatória é uma medida de longo prazo. “O Movimento LGBTI+ sempre lutou por uma educação que promova a liberdade, a tolerância e o respeito aos direitos humanos, como exigem nossa Lei de Diretrizes e Bases, nossa Constituição e o Protocolo Adicional da Convenção Americana de Direitos Humanos”, conclui.
2020 – Liberação da doação de sangue
A mais recente conquista LGBT+ foi realizada no começo do mês de maio, quando, em mais uma decisão histórica, o STF derrubou a restrição que proibia homens gays e bissexuais de doarem sangue. Reforçando o estigma que os associa e culpabiliza pela transmissão do HIV, a proibição já era há muito tempo criticada também por figuras da área da saúde, que apontavam sua incoerência, uma vez que, independentemente de sua origem, o sangue doado sempre passa por testes antes de utilizado em transfusões. A decisão foi aprovada com 7 votos a favor e 4 contra.