Sabemos muito sobre os interesses de Leonardo da Vinci em botânica e anatomia humana, suas explorações na aviação, de máquinas de guerra e do fluxo de água, suas habilidades como pintor e até mesmo sua reputação de deixar projetos inacabados. Mas o que sabemos sobre o homem e suas paixões?
Da Vinci não deixou nada que pudesse ser considerado um diário: seu interesse estava no mundo exterior e não no interior. No entanto, já foram vasculhadas milhares de páginas de notas deixadas por ele em busca de pistas.
Quinhentos anos após sua morte, uma nova ópera celebra este lado mais particular do mestre renascentista. Criada por Alex Mills e Brian Mullin, ela se concentra na relação entre o grande artista e dois de seus assistentes.
Gian Giacomo Caprotti, conhecido por Da Vinci como Salaí ("pequeno demônio"), era um garoto de família pobre que ingressou na sua oficina aos 10 anos, em 1490, quando o mestre tinha quase 30 anos.
Ele imediatamente se notabilizou como um causador de problemas: Mullin encontrou referências frequentes de Da Vinci a Salaí por roubos ou por ter comido mais do que o artista considerava respeitável.
"Ele era um garoto da classe trabalhadora e, evidentemente, muito difícil de lidar, mas acabou ficando com Leonardo por 25 anos", diz Mullin.
Francesco Melzi entrou na vida de Leonardo por volta de 1505. Era um jovem de uma família nobre milanesa e tinha um papel na oficina semelhante ao de um secretário particular. Ele e Leonardo logo desenvolveram uma intimidade que Mills e Mullin comparam à de um pai com seu filho.
Melzi era, como observa Mullin, "completamente diferente de Salaí em sua posição social e comportamento". Não havia um apelido para o aristocrático Melzi: ele era chamado por Da Vinci de "Mestre Francesco".
A ópera de Mills e Mullin se baseia quase inteiramente em fontes históricas, das quais as mais importantes eram os cadernos de anotações de Da Vinci, que o artista canhoto escreveu em um espelho. A obra mostra o "as mudanças no relacionamento que Da Vinci teve com esses dois jovens", diz Mullin. "Ele troca um relacionamento pelo outro, e Salaí fica um pouco de lado."
No fim da vida, Da Vinci se mudou para a França com os dois assistentes, mas Salaí voltou para Milão, e não estava ao lado do mestre quando ele morreu em 1519.
"Da Vinci deixa muito pouco para Salaí: apenas meia vinha, o que é estranho", diz Mullin. Melzi, por outro lado, herdou os cadernos de Leonardo e muitas de suas pinturas. "Parece que havia um drama particular."
Mais intensos e profundos do que se pensa
Como personagens históricos, Salaí e Melzi chegam até nós por meio das representações de Da Vinci em palavras e imagens. Os dois homens eram conhecidos por sua beleza, e acredita-se que Salaí seja o modelo para as pinturas de Baco e São João Batista.
Os criadores da ópera acreditam que estes relacionamentos parecem ter sido mais intensos e profundos do que simplesmente um entre um artista e seus assistentes. "Da Vinci fez muitos desenhos de Salaí. Não é difícil dizer que ele também era uma espécie de musa", diz Mills.
"Todo mundo considera que ele foi companheiro de Leonardo. Ele comprava roupas caras. Os dois viajaram juntos. Todo mundo fala sobre como Salaí era bonito."
Ao abordarem os fatos difíceis da vida de Da Vinci — e as lacunas entre eles —, Mills e Mullin contaram com a ajuda dos seus principais estudiosos, Martin Kemp e Martin Clayton. "Queríamos que as conclusões que tirássemos fossem as mais prováveis e precisas historicamente que fosse possível", diz Mills.
"Os estudiosos e acadêmicos que estudam Da Vinci concluem que ele provavelmente era gay. Tudo aponta para isso, e a ópera nos dá a chance de explorar esse lado dele."
Da Vinci era gay?
A especulação sobre a sexualidade de Da Vinci é um passatempo centenário. Escrevendo na década de 1560, o artista Giovanni Paolo Lomazzo inventou um diálogo entre o artista e o escultor grego Phidias, no qual este o questiona sobre a natureza de seu relacionamento com Salaí: "Você brincou com ele aquele 'jogo do traseiro' que os florentinos amam tanto?"
No diálogo inventado por Lomazzo, Leonardo responde afirmativamente com entusiasmo. Em 1910, Sigmund Freud especulou que, apesar de cercar-se de jovens bonitos, a homossexualidade de Da Vinci era apenas latente e não era colocada em prática.
Uma biografia recente escrita por Walter Isaacson afirma de forma mais contundente que Da Vinci era "ilegítimo, gay, vegetariano, canhoto, facilmente distraído e às vezes herético". É essa visão sobre o artista em sua juventude que será retratada pelo drama de TV estrelado por pelo ator irlandês Aidan Turner, programado para transmissão no próximo ano.
Martin Clayton, chefe de gravuras e desenhos do Royal Collection Trust, organização que administra a coleção de arte da família real britânica, encontrou-se com Mills e Mullin em um estágio inicial do desenvolvimento da ópera.
"Eles apresentaram a ideia de Melzi e Salaí serem dois aspectos gêmeos da figura de Leonardo, que pensei ser uma abordagem muito inteligente", diz Clayton. "O que eles fizeram, apresentar Salaí como o lado sombrio e reprovador e Melzi como o lado sólido e trabalhador, diz algo muito válido sobre Da Vinci."
Para Clayton, a decisão de deixar a Melzi seu legado intelectual, na forma de pinturas, desenhos e cadernos, é um sinal de que ele julgou este assistente capaz de proteger essas obras e ficaria tentado a explorá-las.
Salaí, por outro lado, acabou ficando com mais pinturas do que Da Vinci lhe deixou, o que sugere que ele as roubou ou falsificou. "Ele tinha a reputação de ser oportunista e golpista e acabou morrendo em um duelo."
Relacionamentos homossexuais eram comuns na época
A natureza de sua ligação com Salaí era algo comum na época. "Relacionamentos como este, entre homens adultos e adolescentes, eram realmente muito comuns no mundo em que Leonardo viveu", diz Mullin. No período em que Leonardo morou em Florença, no início de sua carreira, as relações homossexuais eram tão predominantes que o termo "florenzer" se tornou uma gíria alemã para as relações entre pessoas do mesmo sexo.
No entanto, na tentativa de controlar a prática, o governo da cidade incentivou os cidadãos a denunciá-la. Aos 23 anos, Leonardo estava entre os quatro artistas acusados publicamente de sodomia após uma denúncia anônima.
"Não se sabe ao certo se ele foi preso", diz Mullin. "Mas essa campanha pública pode tê-lo encorajado a se entregar."
Mills afirma que, de certa forma, "não importa qual era sua sexualidade, mas é claro que, ao tentar entrar em sua mente, é natural abordar este tema".
E a ópera enquanto forma de arte tem uma qualidade particular que permite que muito seja evocado mesmo que não seja explicitamente dito. "É nisso que a ópera é tão boa: tratar do inconsciente."
Para Clayton, que este ano organizou uma série de exposições baseadas na excelente coleção de desenhos de Da Vinci da Royal Collection, a ópera nos leva a um território que muitas vezes está além do escopo de um museu.
"Ela apresenta o verdadeiro Da Vinci de uma maneira que as exposições de arte geralmente não fazem", diz ele. Uma mostra naturalmente privilegiará desenhos, pinturas e diagramas deixados por Leonardo após sua morte. "Há muita coisa que diz respeito a Leonardo que é difícil de transmitir ao público, e acho que é nisso que essa ópera terá sucesso."