O número de profissionais de saúde da rede pública da cidade de São Paulo afastados após terem contraído Covid-19 quase triplicou em menos de um mês. Segundo dados da própria prefeitura, em 9 de dezembro do ano passado, a cidade tinha 90 profissionais afastados pela doença – entre médicos, enfermeiros, agentes de saúde e auxiliares de enfermagem. Quatro semanas depois, no dia 6 de janeiro de 2022, já eram 269 registros, um crescimento de 198,8%.
O quadro em relação aos profissionais da rede pública que foram afastados por outras síndromes gripais, como Influenza, não é muito diferente. No mesmo período de comparação, os registros passaram de 502 para 1.209, um aumento de 140,8%.
Considerando todas as causas de afastamento, a cidade de São Paulo tinha até o dia 6 de janeiro 1.585 profissionais de saúde da rede pública longe das suas atividades. Além disso, 107 dos profissionais de saúde da capital morreram desde o início da pandemia da COVID-19.
"É um número alarmante, é um número absurdo e não tem como aceitar isso de uma forma tranquila. A gente já imaginava que isso ia acontecer, porque além do fato de vivermos uma pandemia, e de uma epidemia sobreposta [de Influenza], a gente tem profissionais que por estafa e cansaço acabam tendo uma exposição maior pra acabar se contaminando. O adoecimento desses trabalhadores não é só por estarem expostos ao vírus, mas por questões de um trabalho levado ao extremo e de cargas horárias absurdas que aumentam a quantidade de contaminação", afirma a médica Vanessa Araújo e representante do Sindicato dos Médicos de São Paulo (Simesp).
As categorias de médicos e enfermeiros têm questionado as decisões recentes da Prefeitura de São Paulo e diz que a contratação de 280 profissionais não é suficiente para sanar a sobrecarga acumulada nos últimos dois anos de pandemia.
Desde dezembro do ano passado, a Secretaria Municipal de Saúde decidiu ampliar os atendimentos na rede primária, principalmente nas Unidades Básicas de Saúde (UBS), como vacinação contra a Influenza, testagem em massa para gripe e Covid e abertura das UBS aos sábados.
A GloboNews recebeu diversos relatos de médicos que atuam na rede básica da cidade de São Paulo sobre a situação que eles têm vivido nas últimas semanas. A pedido deles, as identidades serão preservadas e nomes fictícios serão usados.
Carlos*: "situação chegou para além do limite a gente já tá esgotado"
"Não tem nenhuma contratação de pessoal para nos ajudar temos pedido para Prefeitura a nível de governo federal, ninguém faz nada. Então a saúde mental da população, o que sofreu diversos traumas por perda de familiares, e a situação de saúde mental dos próprios trabalhadores da Saúde estão indo por água abaixo. (...) A situação chegou para além do limite, a gente já está esgotado. A gente não aguenta mais e quem está sofrendo é a população, que espera em fila de seis horas, quatro horas..."
Paulo*: "o que a gente pede são condições mais justas"
"Vivemos sob estresse, diversos colegas pedindo demissão E assim a população fica permanece mais desassistida do que nunca, população essa extremamente carente nas periferias da cidade de São Paulo. O que a gente pede são condições mais justas, mais dignas, e o reconhecimento mínimo que seria o respeito ao médico que tanto trabalha, trabalhou e continua trabalhando em prol do benefício da saúde do paciente. Este é o único motivo pelo qual a gente continua mesmo sob condições adversas".
Marcelo*: "a categoria está adoecendo"
"Dois anos e esta questão não muda e até piora. Agora a gente tem uma epidemia dentro da pandemia, um surto de influenza junto com os novos casos de coronavirus e isso drenando mais os recursos da atenção primária que não podem ser destinados agora para quem deveria ser destinado. E a gente ainda enfrenta esses novos fluxos que aparecem. (...) A gente vê que a categoria está adoecendo, eles não estão dando conta e isso só vai trazer malefícios para todos para todos. A sociedade inteira sai perdendo, desde os profissionais até os pacientes"
Maria*: "enfermeiras estão estafadas e médicos pedindo demissão"
"Pacientes adoecidos, profissionais adoecidos, profissionais sobrecarregados. É o que a gente tem hoje: dois anos de pandemia. As enfermeiras estão estafadas, aumentou o número de pacientes que elas atendem de coletas de exames. Temos coletas de PCR para covid e para influenza e quem faz essa coleta são as enfermeiras. Os médicos estão pedindo demissão, por quê? Por que estão sobrecarregados."
Esgotamento
Segundo a médica Vanessa Araújo e representante do Sindicato dos Médicos de São Paulo, os profissionais estão exaustos e precisam da atenção do poder público.
"Ninguém aguenta o ritmo que o trabalhador de saúde do Brasil tem levado. É um misto de tristeza, mas uma ponta de esperança e é por isso que a gente continua essa luta. É nesse momento que a gente se encontra agora. Pegando o último fôlego pra gritar junto da população, que a gente precisa de ajuda para vencer a pandemia e retomar um pouco da normalidade e da assistência de saúde da população."
Em nota, a Secretaria Municipal da Saúde afirmou "que, desde dezembro, a rede municipal de saúde passou por um crescimento na demanda espontânea de sintomáticos respiratórios em função do vírus influenza e da variante ômicron da Covid-19, o que pressionou a rede básica municipal. Diante disso, a pasta ampliou o atendimento para que as 469 Unidades Básicas de Saúde (UBSs) auxiliem no atendimento a esses casos, que tendem a ser mais leves, sem conversão em internação hospitalar."
Ainda segundo a nota, a Prefeitura diz que "vem empreendendo junto aos seus parceiros todos os esforços para oferecer a cobertura necessária e a partir da próxima semana a rede contará com um plantonista a mais nas portas de urgência e emergência hospitalares, além de incremento de profissionais nas Unidades Básicas de Saúde (UBSs), com processo de contratação em andamento".
Enfermeiros confirmam sobrecarga
Uma pesquisa do Conselho Regional de Enfermagem de São Paulo (Coren-SP), obtida com exclusividade pela GloboNews, mostra que 81,7% dos enfermeiros, técnicos, auxiliares de enfermagem, obstetrizes e estagiários relataram ter atendido mais pacientes desde o começo de dezembro do ano passado. Quase metade deles também confirma que sofreu agressão verbal, 33,7% tiveram aumento na jornada de trabalho, 29,8% trabalharam mais dias e 26,2% relataram falta de insumos.
"Hoje eu vivo o pior momento da pandemia, literalmente, atuando todo esse tempo. É uma pena, porque agora não é só o vírus da Covid. É da influenza, da gripe... Tudo está sobrecarregando um setor, você não tem mais capacidade para atender as pessoas com o mesmo sintoma. E já está no momento em que nós, profissionais de saúde, já estamos saturados. E já vem todo esse tempo. Achamos que íamos ter uma pausa e não. Veio o pior", relatou Anderson Nascimento, biomédico e técnico em enfermagem.
O levantamento do Coren-SP, feito a partir de dezembro de 2021 (veja abaixo), contou com 252 participantes, sendo que 53,6% atuam na cidade de São Paulo. Para o conselho, o setor de enfermagem em hospitais – públicos e privados, em unidades básicas de saúde e em instituições filantrópicas sente imediatamente os efeitos do aumento da demanda de atendimentos.
Ainda segundo o conselho, a categoria fica sujeita a situações que podem afetar a qualidade da assistência, como aumento no tempo de atendimento e sobrecarga aos profissionais de enfermagem e da saúde. "Para a categoria, o que pesa mais é o aumento do número de casos porque os serviços, na sua grande maioria, começaram a desmontar. Leitos de Covid-19 foram fechados pelo número menor de pacientes e as alas voltaram ao normal. Quando tem um aumento rápido de casos, as unidades não estão preparadas, você sobrecarrega os funcionários", afirma o presidente do Coren-SP, James Francisco dos Santos.
Santos também diz que é preciso uma atenção do poder público sobre a necessidade de mais contratações de enfermeiros, não só de médicos. "Não é só o médico que dá assistência ao paciente. O enfermeiro dá a continuidade a esse atendimento. O desgaste psicológico (da categoria) aumentou recentemente e a sondagem vem mostrando que a sobrecarga tem sido determinante na saúde mental".
Pesquisa do Coren-SP
Perfil das instituições onde trabalham os participantes
-47,2% atuam em hospitais
-18,7% atuam em pronto-atendimentos
-14,7% atuam em unidades básicas de saúde
-10,3% atuam em clínicas médicas
-42,5% são de instituições particulares
-36,9% são de instituições públicas municipais
-17,1% são de instituições públicas estaduais
-13,9% são de instituições filantrópicas
Situações percebidas no período
-81,7% relatam mais pacientes atendidos
-40,9% relatam ter sofrido agressões verbais
-33,7% relatam maior duração da jornada de trabalho
-29,8% relatam ter trabalhado mais dias
-26,2% relatam falta de insumos
-10,7% relatam falta de EPI
-9,5% relatam ter sofrido agressões físicas
Situações relatadas pelos profissionais
-77,8% acreditam que as situações anteriores se intensificaram
-75,4% não receberam intensificação de treinamento para atuar frente ao aumento da demanda de atendimento.