Tratamento com ayahuasca pode ajudar dependentes químicos

A bebida é uma mistura de dois cipós amazônicos, o jagube e a chacrona. Macerados e cozidos, eles geram um caldo rico em dimetiltriptamina

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“Eu sou uma terapeuta psicodélica, então.” Adelise Noal sorri e suas feições se iluminam como as mandalas caleidoscópicas que enfeitam seu consultório. É como se ela tivesse descoberto um jeito novo de definir os atendimentos que realiza desde 1997. Um trabalho que a médica, especialista em psicologia junguiana, começou depois de experimentar o chá de ayahuasca. A bebida é uma mistura de dois cipós amazônicos, o jagube e a chacrona. Macerados e cozidos, eles geram um caldo rico em dimetiltriptamina – o DMT, uma substância psicodélica. Com informações da revista Superinteressante.

Ela tem moléculas parecidas com as da serotonina, neurotransmissor ligado ao humor e ao bem-estar. Por isso, consegue se conectar aos receptores serotoninérgicos, que atuam como fechaduras presentes em cada neurônio. A serotonina é a chave-mestra. Quando há o encaixe, os neurônios passam impulsos elétricos um ao outro. A diferença é que o giro de chave feito pelo DMT abre portas do cérebro que a serotonina não abre. Atrás delas há um mundo alucinante, pouco compreendido pela ciência. E, acreditam alguns pesquisadores, dentro desse universo psicodélico pode estar a cura para diversos problemas da mente humana.

Chá de ayahuasca (Foto: Getty Images)

Com o DMT, a pessoa consegue enxergar de olhos fechados. A região do cérebro responsável pela visão é ativada pela droga. É como estar acordado em meio a um sonho. O que aparece nesse delírio? O que a ayahuasca mandar. Os índios da Amazônia, que a utilizam há séculos, chamam-na de planta professora. De fato, a ayahuasca pode apontar meios para superar medos e traumas. Afinal, o transe do DMT pode ser farto de simbolismos pessoais, facilitando a ressignificação de conceitos e atitudes. Possibilidades assim atraíram Adelise. “A bebida é poderosa. Vi que poderia ser uma ferramenta terapêutica e de autoconhecimento”, explica.

O interesse a fez rumar de Porto Alegre à Vila Céu do Mapiá, aldeia de 500 habitantes localizada no Igarapé Mapiá, um braço do Rio Purus, no sul do Amazonas. Lá, Adelise se iniciou na doutrina do Santo Daime, um culto baseado no consumo da ayahuasca. Nos rituais, os adeptos rezam, cantam hinos e bebem uma ou mais doses. Em 40 minutos, começam a ter mirações – as visões causadas pela bebida. A experiência varia. Alguns relatam um sentimento de plenitude, uma conexão mística com a natureza. Mas há quem vomite, tenha crises de choro e ansiedade ou veja coisas tão aterrorizantes que implore para o efeito acabar. “A ayahuasca é uma substância de trabalho e não de prazer”, diz o neurocientista Dráulio de Araújo, professor do Instituto do Cérebro da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).

Tratamento é estudado por uma equipe de psiquiatras e enfermeiros (Foto: Getty Images)

Desde 2006, ele estuda a ação do psicodélico no cérebro. Um de seus focos é a aplicação da ayahuasca no tratamento da depressão. Entre 2014 e 2016, Dráulio coordenou uma pesquisa reunindo 29 pacientes com depressão resistente – quando utilizam pelo menos dois medicamentos e não melhoram. Do total, 14 receberam uma dose única de 1 ml por quilo corporal de ayahuasca, acompanhados por psiquiatras e enfermeiros. Os outros 15 tomaram um placebo que imitava a aparência e o gosto do chá. No primeiro dia, ayahuasca e placebo tiveram quase o mesmo efeito: 50% e 45% das pessoas, respectivamente, relataram que os sintomas da depressão caíram pela metade. A diferença veio depois de 21 dias: 60% do grupo da ayahuasca percebia uma diminuição de sintomas sem ter ingerido nenhuma outra medicação, contra 27% do placebo. Antidepressivos químicos, em geral, demoram ao menos um mês para fazer efeito e exigem ingestão diária.

O estudo da UFRN foi publicado em 2018 na revista Psychological Medicine, da Universidade de Cambridge, na Inglaterra. Embora aplicado em um grupo reduzido, o trabalho ajudou a consolidar a ayahuasca como uma das protagonistas do renascimento psicodélico nos meios científicos. Ácido lisérgico (LSD), psilocibina (o princípio ativo dos cogumelos alucinógenos) e metilenodioximetanfetamina (MDMA, a base do ecstasy) também têm sido objetos de estudo. O interesse pela investigação científica dessas substâncias foi retomado recentemente, após uma lacuna de quase 50 anos.

TILT NO CÉREBRO

A primeira onda psicodélica aconteceu entre os anos 1950 e 1960. Nessa época, foram publicados mais de mil artigos sobre aplicação terapêutica de alucinógenos. Estima-se que 50 mil pessoas tenham participado de experimentos clínicos. Um dos maiores estudos, publicado em 1967, foi conduzido pelo anestesiologista Eric Kast, professor da Escola de Medicina de Chicago. Ele utilizou doses de LSD para aliviar a dor e a ansiedade em 126 pacientes com câncer terminal. Ao todo, 90% relataram melhora em sintomas como isolamento e melancolia. Alguns passaram mais de dez dias sem dores, com apenas uma dose. A teoria de Kast era de que os pacientes haviam esquecido da dor por estarem vivendo a experiência mental do LSD. A etapa posterior ao uso é vista como uma janela de oportunidade para a mudança de comportamento, já que o cérebro é quimicamente chacoalhado.

Imagine um fliperama em que a bolinha faz sempre o mesmo caminho. Ela é acionada, repica numa tabela à esquerda, vai para outra na direita, bate num obstáculo e cai no buraco. Diariamente, anos a fio. O fliperama é o cérebro. A bolinha, as conexões entre os neurônios. O percurso que ela faz é chamado de Rede de Modo Padrão (DMN, na sigla em inglês), um sistema ligado ao pensamento abstrato que se ativa quando refletimos sobre nós mesmos. Uma das marcas da depressão e da ansiedade são as ruminações – padrões de pensamento repetitivos aos quais o sujeito retorna com frequência e, muitas vezes, não consegue sair. O Transtorno Obsessivo-Compulsivo (TOC) é um dos melhores exemplos. Acredita-se que o cérebro deprimido tenha uma DMN muito forte: ele fica trancado num circuito fechado, angustiante e sem opções. Agora, vamos observar a entrada da bolinha psicodélica nesse jogo.

Quando a substância começa a agir, o pinball cerebral entra em parafuso. A bola rebate em todas as tabelas possíveis. Pula um obstáculo, atravessa outro. Duplica-se. Triplica-se. Todas as luzes do painel piscam em velocidade vertiginosa. A pessoa pira. Ao menos por um tempo. Um exame de imagem do Centro de Pesquisa Psicodélica do Imperial College, de Londres, mostrou a diferença entre as ligações cerebrais antes e depois do uso de psilocibina. Ela faz com que as conexões neuronais tomem rotas incomuns – o que pode ser uma explicação para os efeitos sinestésicos dos psicodélicos. Quando a região responsável pela audição se liga à área gustativa, por exemplo, a pessoa pode sentir o gosto de uma música. Ou ver a cor de um perfume.

Mas o efeito desse tilt pode ir além de uma simples viagem. Ao quebrar o padrão repetitivo das conexões neuronais, o psicodélico desliga o DMN e abre um escape para o paciente fugir de seus padrões de pensamento mais angustiantes. A mente passa a agir de outra maneira, ganha novas perspectivas. Surge então a chance de dar outro sentido a questões pessoais com o auxílio de um terapeuta, e mais rápido que na abordagem tradicional. “A terapia psicodélica facilita mudanças reais na consciência, fornecendo maior ímpeto para transformações que são demoradas nos tratamentos convencionais”, diz a psicoterapeuta Michelle Baker-Johnes, do Imperial College.

Atualmente, a instituição estuda o uso da psilocibina para tratar depressão resistente. Um experimento feito em 2016 com 12 pacientes constatou melhora dos sintomas com apenas duas doses (de 10 mg e de 25 mg), ingeridas em ambiente controlado, num intervalo de sete dias. Todos os pacientes relataram diminuição considerável nos sintomas uma semana após a segunda dose. Em oito deles, a depressão desapareceu e cinco se mantiveram assim após três meses. Nos outros sete, a depressão voltou, embora mais fraca do que antes.

Um dos pacientes submetidos à experiência descreveu o efeito como um reset cerebral. Ele comparou o processo à desfragmentação de um HD – comando que organiza a bagunça dos arquivos para melhorar o funcionamento do computador. A faxina pode vir acompanhada de uma renovação das células nervosas. Em geral, pacientes com transtornos de humor sofrem atrofia nos neurônios, dificultando as sinapses. O cérebro, assim, perde a capacidade de se adaptar a novos estímulos. Além disso, as mudanças estruturais afetam o hipocampo, área responsável pela memória.

Uma pesquisa da Universidade da Califórnia, publicada em 2018, mostrou que os psicodélicos aumentam muito os processos de recuperação e nascimento dos dendritos em ratos. Esses filamentos são como braços dos neurônios: quanto maior o número e o comprimento deles, melhor é a capacidade de receber e transmitir estímulos elétricos. O impulso dado pela retomada da neuroplasticidade, associado à psicoterapia, poderia facilitar uma melhora mais longeva

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