Referência em estudos sobre mudanças climáticas, Carlos Nobre fez parte da equipe internacional de cientistas que recebeu o Prêmio Nobel da Paz em 2007. Naquele ano, junto com o ex-vice-presidente americano Al Gore, os pesquisadores do IPCC (painel da ONU sobre mudanças climáticas) foram premiados pelo papel de alertar sobre os riscos do aquecimento global e lutar pela preservação ambiental.
Aos 70 anos, o climatologista agora está engajado numa nova empreitada: desenvolver um novo modelo econômico para manter a floresta amazônica em pé, aliando o uso de tecnologias de última geração com o conhecimento tradicional dos povos da região. Ele e o irmão, o biólogo Ismael Nobre, lideram o projeto Amazônia 4.0, que cria laboratórios portáteis para capacitar comunidades locais a desenvolverem produtos de maior valor agregado a partir de insumos como o cacau e o cupuaçu.
De São José dos Campos (SP), onde mora, o pesquisador colaborador do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo explicou a Ecoa como funcionam as biofábricas e falou sobre caminhos para negócios sustentáveis que fazem frente à explosão do desmatamento da Amazônia. "Um hectare de sistema agroflorestal rende, em média, mil dólares por ano. Isso é cinco vezes mais o rendimento da soja e dez vezes mais o do gado", explica.
Economia da floresta em pé
Ecoa - Qual o papel da bioeconomia para preservar a floresta amazônica?
Carlos Nobre - É fundamental. Temos que desenvolver rapidamente um novo modelo econômico da Amazônia que enxergue o potencial da floresta em pé. A Amazônia é a região que apresenta a maior diversidade de espécies de plantas e animais do planeta. Só para te dar um exemplo: um hectare de floresta amazônica tem mais espécies de árvores do que toda a Europa. São mais de 300. É preciso investir em ciência, tecnologia e inovação para desenvolver produtos a partir da biodiversidade e do conhecimento tradicional dos povos amazônicos. Produtos que tenham potencial para atender os mercados regional, nacional e internacional e que gerem melhores empregos locais.
Como vai funcionar o projeto Amazônia 4.0?
Queremos levar tecnologias da 4ª Revolução Industrial à região, agregando valor às cadeias da biodiversidade. Criamos o conceito de laboratórios criativos da Amazônia, que são biofábricas portáteis para usar na capacitação de populações que queiram entrar na industrialização. Numa primeira etapa, conseguimos financiamento de 700 mil dólares (R$ 3,8 mi) do Banco Interamericano de Desenvolvimento para capacitar quatro comunidades da cadeia do cacau e do cupuaçu do Pará. A expectativa é que sejam capacitadas mais de 100 pessoas de populações ribeirinhas, quilombolas, indígenas e de reservas extrativistas. O objetivo é atuar junto com a ONG Conexsus para criar um ecossistema de sustentabilidade, inovação e negócios.
Que produtos serão desenvolvidos nos laboratórios?
O primeiro laboratório está sendo finalizado no Parque Tecnológico da Universidade do Vale do Paraíba, em São José dos Campos. Vamos levá-lo para a Amazônia no ano que vem. É uma biofábrica de cupulate, chocolate feito da semente do cupuaçu. Para você ter uma ideia do quanto isso agrega de valor: o quilo do cupulate vale dez vezes mais que o da semente do cupuaçu. Também queremos criar produtos com a polpa do cupuaçu e o nibs do cacau [chocolate em sua forma mais pura]. Finalizamos o desenho de um laboratório para a cadeia da castanha do Brasil e faremos outro para a do açaí.
Açaí ganhou o mundo
Quais são os bons exemplos de iniciativas que exploram a biodiversidade amazônica de forma sustentável e trazem renda à população local?
Um bom exemplo é a CAMTA (Cooperativa Agrícola Mista de Tomé-Açu), no Pará, a cooperativa mais desenvolvida da Amazônia brasileira. Lá encontramos famílias chegando à classe média, com os filhos estudando na universidade. Eles trabalham com sistemas agroecológicos. Não são monoculturas, mas florestas com uma densidade maior de espécies que têm valor econômico, como a palmeira do açaí. A CAMTA comercializa mais de 120 produtos a partir de 64 espécies da Amazônia e consegue atingir os mercados regional, nacional e internacional. Esses produtos têm potencial econômico muito maior do que o gado ou a soja, os dois principais vetores de desmatamento da Amazônia. Um hectare de sistema agroflorestal rende, em média, mil dólares por ano. Isso é cinco vezes mais o rendimento da soja e dez vezes mais o do gado.
Qual o potencial de um produto amazônico conquistar o mercado internacional?
Temos o exemplo do açaí. Conheci o fruto na minha primeira viagem para a Amazônia, em 1971, quando era estudante universitário. Na época, era um produto de consumo local. No final dos anos 90, o açaí se popularizou no país, começou a expandir seu mercado e passou a atrair a atenção de empresas internacionais. Um grupo da Califórnia desenvolveu uma série de produtos no Vale do Silício. Hoje em qualquer farmácia dos EUA você encontra óleos, cosméticos e produtos alimentícios à base de açaí. Virou uma indústria mundial de 15 bilhões de dólares (cerca de R$ 81 bi). Isso mostra que há um potencial muito grande e pouco explorado.
O açaí gerou riqueza para a população amazônica?
Trouxe melhorias de qualidade de vida, mas ainda pouca industrialização. O professor Francisco Costa, da Universidade Federal do Pará, um dos que mais estudam a cadeia do açaí, mostrou que cerca de 250 mil famílias se beneficiam da produção do açaí. Elas passaram da classe E para a classe D. Em Belém já existem 2.000 pessoas que chegaram à classe C e trabalham na pré-industrialização. Eles pegam a polpa do açaí, fazem um beneficiamento e transformam num produto que é exportado.
Pressão internacional
Nunca se falou tanto em ESG (boas práticas nas áreas ambiental, social e de governança corporativa), inclusive no agronegócio, com o rastreamento da carne bovina para que não venha de área desmatada. Há ações efetivas ou a maioria é greenwashing?
Três das maiores empresas de carne do Brasil, inclusive a JBS, já assumiram o compromisso de zerar o desmatamento até 2040. Isso significa comprar carne apenas de áreas legalizadas, que não façam desmatamento. É uma pressão que veio de fora. São grandes companhias que exportam e que perceberam que vão perder mercados se não tiverem rastreabilidade. Fundos financeiros europeus já excluíram ações de empresas de carne por conta do papel no desmatamento da Amazônia. Isso acendeu um sinal de alerta.
Qual o papel do consumidor para pressionar essas empresas?
Para que a geração da [ativista ambiental] Greta Thunberg e as futuras possam ter uma trajetória sustentável, vamos ter que mudar nossos hábitos de consumo. Por exemplo, temos que reduzir muito o consumo de carne bovina. A pecuária está associada a muitas emissões, incluindo a do gás metano emitido pelo gado. Hoje inúmeras empresas produzem carne de base vegetal. Até 2025 ela se tornará mais barata que a animal. Na minha casa, não entra carne animal. Minha esposa compra carne vegetal uma vez por semana. Cada um deve fazer a sua parte.
Política ambiental atual
Como você avalia a política ambiental do governo do presidente Jair Bolsonaro?
Por mais que o presidente tenha dito em abril, na reunião virtual da Cúpula do Clima, que o Brasil vai zerar o desmatamento ilegal da Amazônia até 2030, infelizmente isso é greenwashing [propaganda enganosa de ação ambiental] porque não há nenhuma medida efetiva nesse sentido. Esse governo chegou com o discurso do desenvolvimentismo dos anos 70, que vê as árvores como obstáculo ao desenvolvimento. Houve um enfraquecimento acentuado da legislação ambiental e dos órgãos de fiscalização. Vimos a explosão do desmatamento e o aumento da degradação florestal e do número de incêndios. O Brasil, que já foi protagonista global na redução do desmatamento, virou o maior pária ambiental do planeta.
Qual o risco de savanização da floresta amazônica?
O que estamos vendo em todo o sul da Amazônia são sinais claros do risco dessa savanização. A floresta está ficando com uma estação seca três ou quatro semanas mais longa. A estação seca não só está mais quente, mas também mais seca. O dado mais preocupante é que está aumentando a mortalidade das árvores do clima úmido amazônico. Essas árvores morrem, são decompostas e todo aquele carbono da matéria orgânica vai para a atmosfera na forma de gás carbônico, um gás do efeito estufa. A floresta ali está perdendo carbono, deixou de ser sumidouro de carbono. Tudo isso está acontecendo nesse arco do desmatamento. Não é algo teórico, é uma coisa que estamos vendo se precipitar à nossa frente.