O ex-detento Antonio Carlos Dias, 47 anos, primeira testemunha a ser ouvida no primeiro dia do julgamento de 26 policiais militares acusados de participação no episódio que ficou conhecido como "massacre do Carandiru", disse nesta segunda-feira que os presos mortos na Casa de Detenção de São Paulo, em 2 de outubro de 1992, não estavam armados e foram assassinados de forma aleatória pela Polícia Militar. Segundo ele, a briga entre dois detentos que originou o tumulto teria sido controlada pela administração da prisão, mas a polícia "surpreendeu todo mundo" ao decidir invadir o local, atirando de forma aleatória contra os presos. "Só não voltou ao normal porque a polícia entrou na cadeia", disse.
"Eu vi uma montanha de corpos, todos caídos, alguns se agonizando. (...) Fizeram um corredor (entre duas filas de PMs) e nos mandaram descer. Fomos brutalmente espancados. Qualquer descuido, eles matavam. Muitos morreram assim: só de olhar (para os policiais)", afirmou o sobrevivente, que relatou ainda que os policiais possuíam facas e pedaços de pau, e que muitos foram esfaqueados ao passar por esse corredor.
Primeira testemunha de acusação a depor, Dias cumpria pena por roubo na ocasião e teve o nariz quebrado durante o tumulto, segundo ele, após levar uma paulada por um policial, quando ia até o pátio do presídio, ordenado pela PM. Ele, que aparentava estar bastante nervoso e se emocionou durante o depoimento, pediu para depor sem a presença dos réus, que foram retirados do plenário. O sobrevivente negou que os presos estivessem armados e disse que todas as facas - fabricadas com barras de ferro das celas - foram jogadas pelas janelas quando se espalhou a notícia de que a polícia invadiria a prisão.
"Em cinco anos que fiquei preso lá, eu nunca vi nenhuma arma (de fogo). Nem facas eles tinham mais, porque jogaram pelas janelas antes da polícia chegar", afirmou Dias, que comparou as rajadas de metralhadora ouvidas ao "som contínuo de um ferro batendo em lata".
Dias relatou ainda que deveria ter cumprido cerca de 1 ano e 8 meses de prisão, mas foi "esquecido" pela Justiça no Carandiru e acabou ficando cinco anos na Casa de Detenção. Para o sobrevivente, o número de vítimas foi bem maior que o divulgado pelo governo do Estado, na época, comandado por Luiz Antônio Fleury Filho.
"Tem um detalhe que poucas pessoas viram. Eu vi, porque depois fui para o 5º andar, vários corpos em cima de uma caçamba. (...) Só os corpos que eu vi entre o segundo andar e o pátio já dava 100 pessoas. Muita gente não tinha visita, não tinha família. Tinha muitos nessa condição. Eu acredito que, no mínimo, morreu o dobro do que eles falaram. Eu estive lá, eu presenciei", afirmou. "Eu acredito que quem não tinha visita, era "indigente", foi descartado como lixo", disse.
Vida após a prisão
Como a maioria dos presos do pavilhão 9, Dias era réu primário quando o episódio ocorreu. Acusado por roubo, ele foi condenado a 8 anos de prisão, teria de cumprir menos dois anos em detenção, mas permaneceu cinco anos preso. Ele nega ter participado do crime pelo qual foi condenado e disse ter sido torturado pela polícia a confessar o envolvimento. O crime teria ocorrido em 1990, mas ele aguardou em liberdade pelo julgamento e foi preso em 1992.
Na época, ele cursava faculdade de administração de empresas e trabalhava no departamento de Recursos Humanos de uma empresa. Ele deixou o Carandiru em 1997. "Não consegui emprego por muitos anos depois. Hoje eu trabalho por conta própria", contou. Esse foi o único processo criminal a que ele respondeu.
A Promotoria tenta comprovar que, ao contrário do que se pensa, a maioria dos detentos mortos não era de alta periculosidade e cumpria a primeira pena na prisão - alguns ainda aguardavam julgamento.
Ao todo, 111 detentos morreram após a polícia invadir o pavilhão 9 do presídio, depois de uma briga entre dois presos dar início a uma rebelião. Devido ao número de réus, o júri foi desmembrado de acordo com o número de mortes ocorridas em cada pavimento e, neste primeiro julgamento, 26 dos 84 policiais militares denunciados por homicídio serão julgados por 15 mortes registradas no segundo andar. O júri é formado por seis homens e uma mulher e acontece no Fórum Criminal da Barra Funda, em São Paulo. Vinte e três testemunhas foram convocadas pela defesa e pelo Ministério Público.
Julgamento
Passados 20 anos do episódio que terminou com 111 presos mortos no Pavilhão 9 da Casa de Detenção de São Paulo, em outubro de 1992, 26 policiais militares serão julgados pelo caso que ficou conhecido como Massacre do Carandiru.
Pelo menos 79 PMs acusados de envolvimento nas mortes aguardam julgamento. O único que recebeu a sentença foi o coronel da Polícia Militar Ubiratan Guimarães, que coordenava a operação no dia do massacre, mas teve sua pena de 632 anos de prisão anulada em 2006, sete meses antes de ser assassinado.
Em 2 de outubro de 1992, uma briga entre presos da Casa de Detenção de São Paulo - o Carandiru - deu início a um tumulto no Pavilhão 9, que culminou com a invasão da Polícia Militar e a morte de 111 detentos. Entre as versões para o início da briga está a disputa por um varal ou pelo controle de drogas no presídio por dois grupos rivais. Ex-funcionários da Casa de Detenção afirmam que a situação ficou incontrolável e por isso a presença da PM se tornou imprescindível.
A defesa afirma que os policiais militares foram hostilizados e que os presos estavam armados. Já os detentos garantem que atiraram todas as armas brancas pela janela das celas assim que perceberam a invasão. Do total de mortos, 102 presos foram baleados e outros nove morreram em decorrência de ferimentos provocados por armas brancas. De acordo com o relatório da Polícia Militar, 22 policiais ficaram feridos. Nenhum deles a bala.