Corria o ano de 1822 quando, no Rio de Janeiro, foi publicado um ensaio sobre a antipatia e aversão mútuas de “alguns portugueses europeus e brasilienses”. Assinado pelo médico Raimundo José da Cunha Matos, trata-se de um dos 362 panfletos escritos entre 1820 e 1823 reunidos nos quatro volumes recém-lançados de “Guerra literária — Panfletos da Independência (1820-1823)” (Ed. UFMG), organizados pelos historiadores José Murilo de Carvalho, Lúcia Bastos e Marcello Basile. A obra, resultado de 17 anos e meio de pesquisa com períodos de intervalo por falta de financiamento de órgãos de fomento, além de reunir pela primeira vez o material disperso por arquivos de Brasil, Portugal e Uruguai, permite novas interpretações do processo de independência brasileiro. Nos panfletos surgem as vozes de funcionários públicos, religiosos, profissionais liberais e negociantes que travam uma verdadeira batalha literária sobre os rumos do país.
— Há várias visões da Independência: uma triunfalista, de D. Pedro como herói; outra, crítica, de que foi um arranjo familiar entre D. João e D. Pedro, que se acertaram e o Brasil engoliu; e uma terceira, de que foi um complô das elites políticas para fazer a Independência e manter a escravidão. São visões comuns e todas excluem o povo. Os panfletos mostram o contrário. Não estou dizendo que quem escrevia era povo, mas os impressos circulavam, eram lidos em voz alta nas ruas, provocavam discussões. São a prova de que existiu um debate muito intenso a respeito de todas as grandes decisões da Independência — afirma Carvalho, professor emérito da UFRJ e integrante da Academia Brasileira de Letras (ABL).
DISPUTA POLÍTICA
O trabalho de pesquisa dos três começou no segundo semestre de 1997. Foi uma intensa peregrinação que passou pela Biblioteca Nacional e pelo Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, no Rio de Janeiro; pela coleção particular do bibliófilo José Mindlin (hoje Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin, na USP); pela Biblioteca Nacional de Portugal, em Lisboa; e a Biblioteca Nacional do Uruguai, em Montevidéu, além de arquivos estaduais na Bahia, Rio de Janeiro, Pernambuco e Maranhão. O vizinho latino-americano foi incluído porque, naqueles anos, a então Província Cisplatina fazia parte do Reino Unido de Brasil, Portugal e Algarves. O Uruguai só alcançou a independência em 1828.
Uma das dificuldades encontradas é que, nos acervos, os panfletos estão catalogados apenas pelo nome e título. Logo, não é possível saber quais publicações podem ser caracterizadas como panfletos ou não. Ao todo, mais de 500 exemplares impressos foram identificados e 362 selecionados (aqueles que tinham até 50 páginas). Documentos oficiais foram desconsiderados. Os panfletos manuscritos foram reunidos pelos três no livro “Às armas, cidadãos” (Companhia das Letras/Ed. UFMG), de 2012.
Os historiadores conseguiram identificar 95 autores. A prioridade foi para brasileiros. Portugueses só foram considerados se seus panfletos estivessem relacionados a questões do Brasil ou se sua trajetória estivesse ligada ao país. A maioria era de funcionários públicos, o que inclui também os religiosos, já que não havia separação entre Igreja e Estado. Os demais eram profissionais liberais ou negociantes e proprietários de terra. Para mapear essa produção, os anúncios dos livreiros funcionaram como um guia e um reflexo do interesse do público pelo formato.
— Os panfletos eram geralmente vendidos nas próprias tipografias, livrarias e lojas comuns. O fato de eles serem anunciados mostra como eram aguardados pelo público. Temos notícias de que as tipografias ficavam engarrafadas e não conseguiam dar conta da demanda de impressão — conta Marcello Basile, professor da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ). — Em todos os momentos, jornais e panfletos convivem, mas estes eram menores e mais baratos, ágeis e versáteis do que os jornais. Uma pessoa escrevia um panfleto, chegava na tipografia e mandava imprimir.
Por essas características, as publicações eram o principal meio de disputa política e típicas de momentos turbulentos, explica Lúcia Bastos, professora titular de História Moderna da Uerj.
— Essa é uma cultura que, a partir do final do século XVI, aparece durante as convulsões políticas. Foi assim durante as revoluções inglesas do século XVII, nas independências dos Estados Unidos e da América Hispânica, no século XVIII. No Brasil, há registro de panfletos manuscritos em 1798, na Conjuração Baiana. Mas a circulação se intensifica a partir das guerras napoleônicas na Europa, principalmente após a invasão de Portugal — diz ela.
A produção no Brasil arrefeceu depois de 1815, com a derrota definitiva de Napoleão, e voltou a crescer a partir de 1820. Em agosto daquele ano, ocorreu em Portugal a Revolução do Porto, que, unindo a burguesia e o Exército, impôs a substituição do Antigo Regime pela monarquia liberal com a convocação das cortes, cujos deputados eleitos dariam ao reino uma Constituição. Foram as cortes que determinaram o retorno de D. João VI, em abril de 1821, e mais tarde o de D. Pedro, que nunca aconteceu. Todos esses movimentos eram acompanhados por calorosas discussões, que não raro terminavam em trocas de ofensas, especialmente nas cartas. E continuariam depois da Independência, sobre o tipo de governo que se desejava para o novo país.
DIVERSIDADE DE GÊNEROS
Cada volume reúne um gênero de panfleto: cartas; análises; sermões, diálogos e manifestos; poesias, relatos e Cisplatina. Os organizadores adotaram a divisão por gênero porque eles refletem a intenção do autor. Se as cartas eram as preferidas para os ataques pessoais, as análises buscavam atender a leitores mais instruídos. Já os sermões, diálogos e poesias tinham maior capacidade de comunicação oral e ajudavam a transmitir para um público amplo os conceitos políticos que surgiam. A linguagem dos panfletos era bem mais coloquial e direta, afastando-se da erudição comum aos livros.
— Uma pessoa mais intelectualizada argumentava mais. Muitos padres eram brigões e optavam pelas cartas. E havia também aqueles com preocupações didáticas, que escreviam catecismos, dicionários cívicos para educar as pessoas, ensinar os conceitos que surgiram naquele momento: o que é Constituição? O que é liberalismo? O que é representação? — afirma Carvalho. — As poesias, em geral, eram para elogios. Mas à medida que a opção pela Independência foi se aproximando, elas se tornaram muito patriotas em relação ao Brasil. Inclusive o Hino da Independência aparece num dos panfletos.
A partir do material, Lúcia argumenta que fica claro que os debates sobre a Independência do Brasil não seguem uma linha de continuidade com as tentativas frustradas no século XVIII. Pelo contrário, a Inconfidência Mineira e a Conjuração Baiana nem são citadas. As condições para a separação de Brasil e Portugal vão aparecer, principalmente, a partir das posições das cortes.
— Até o início de 1822, nenhum panfleto está falando de Independência, mas de crítica ao absolutismo. Não há referência à Inconfidência Mineira, à Conjuração Baiana, não veem nenhuma relação. Discute-se sim uma autonomia, uma monarquia dual, porque tinha que ter um herdeiro da casa de Bragança aqui. Os panfletos que encontramos na Bahia, muito ligados a Portugal, mostram uma adesão ao processo liberal que ocorria lá. Só com a intransigência das cortes de Lisboa é que isso vai mudar — defende a professora.
A intensa proliferação dos panfletos se encerra em 1823, com o fechamento da Assembleia Constituinte por D. Pedro e o recrudescimento da censura. Eles voltarão na abdicação do Imperador, no período regencial, mas em uma quantidade bem menor. Segundo Basile, com a consolidação da imprensa, os jornais vão ganhando espaço, embora os panfletos não desapareçam como um todo. Para Carvalho, o surgimento de outros espaços de expressão também contribuiu para que este tipo de publicação perdesse força.
— Em 1824 já existe um congresso funcionando, era uma maneira de se expressar, inclusive para oposição. Um caminho que não existia antes, quando ela praticamente só tinha voz nos jornais e nos panfletos.
Mesmo após quase duas décadas de trabalho, a missão do trio não acabou. Eles garantem que há material inédito — já encontrado em Portugal e no Brasil — para publicar um quinto volume.