Sentados em um amplo salão quase vazio, Omar e Hisham estão com as feições tranquilas, apesar de guardarem na memória uma das maiores atrocidades perpetradas pelo regime do ditador Muammar Kadhafi. O episódio ocorreu há 27 anos, mas pela expressão serena de seus olhos escuros, parece correto o ditado que diz que o "tempo é o melhor remédio".
Omar tinha apenas 14 anos e seu irmão Hisham 9 quando seu pai, um rico empresário chamado Uzman Sarti, saiu de sua casa disfarçado a bordo de um veículo para nunca mais voltar vivo a seu bairro de Souq Al-Juma, no leste de Trípoli.
"Ele ia acompanhar a família de uma das empregadas que acabava de morrer até a Tunísia. Alguém o avisou que a polícia secreta tinha saído para buscá-lo e ele decidiu trocar de roupa. Nunca mais voltamos a vê-lo", relata Omar.
"Nós éramos muito pequenos na época e não nos deixaram ir à execução pública. Eu não consegui ver o vídeo até este ano. É doloroso demais lembrar", acrescenta.
A trágica história de Uzman Sarti, um dos milhares de executados por Kadhafi, remonta ao início dos anos 1980, no apogeu de uma das épocas mais obscuras da ditadura líbia.
Corretor de seguros, Sarti conseguiu fazer uma pequena fortuna no negócio da construção civil, antes de se tornar representante de uma importante empresa britânica em Trípoli.
Em uma de suas frequentes viagens a Londres, entrou em contato com opositores no exílio, em particular com a Frente Nacional de Salvação da Líbia (NFSL, na sigla em inglês), que em maio de 1984 tentou sem sucesso realizar um golpe de Estado e assassinar o tirano Kadhafi.
"Nas semanas anteriores a sua prisão, nos obrigaram a abandonar nossa casa e a destruíram. Tivemos que ir viver em um lugar pequeno e nunca conseguimos recuperar nossa terra. Foi um aviso", relembra Omar.
"Meu pai conseguiu fugir, mas se entregou depois que ficou sabendo que tinham ameaçado machucar seus filhos. Fizeram um julgamento público que foi uma farsa e o condenaram à morte", acrescenta enquanto fixa o olhar em um retrato em preto e branco de Uzman jovem.
A execução aconteceu em maio de 1984, em pleno mês do Ramadã, em meio a uma onda violenta de represálias determinadas por Kadhafi.
"Depois colocaram o corpo em um caminhão de lixo e o trouxeram ao bairro para que servisse de exemplo. Nunca nos entregaram o corpo nem nos permitiram enterrá-lo", relata enquanto Hisham brinca com uma foto mais recente de seu pai entre os dedos.
Quase três décadas depois, e uma vez que o ditador que arruinou suas vidas caiu, Omar empreendeu uma busca pelo corpo de seu pai. Graças a "uns contatos", e acompanhado de outra família com uma história semelhante, conseguiu na segunda-feira (12) entrar em um conhecido necrotério da cidade.
Esses mesmos contatos o permitiram entrar no chamado depósito dos mortos de 1984, até então só acessível aos serviços secretos de Kadhafi, e no qual diz ter visto 18 corpos, um deles de uma mulher.
"Acho que meu pai não estava lá. Os corpos estavam muito desfigurados, envolvidos em plástico. Pode ser que tenha sido enterrado em uma vala comum", relata Omar.
Ao assassinato de seu pai, seguiu-se a implacável perseguição do regime a toda sua família.
Um dos sobrinhos mais queridos de Uzman, que também foi preso em 1984, passou 21 anos na cadeia, sem acusações formais nem julgamento, e foi detido brevemente há algumas semanas, nos dias anteriores à queda de Trípoli.
O sobrenome Sarti ficou maldito: os membros da família não podiam ter documentos, passaporte, nem títulos de propriedade. Muitas pessoas se afastavam ao ouvir seu nome.
"A morte é pouco para Kadhafi", responde Omar quando perguntado sobre qual destino quer para o ditador. "Nós acreditamos na justiça divina", conclui.