Um dos primeiros oncologistas brasileiros, igualmente pioneiro em entender a importância de se falar sobre a Aids com a população e renovador na comunicação da saúde na mídia— só ele é chamado nas ruas de “médico do Brasil” — Drauzio Varella lança esta semana, aos 79 anos, “O exercício da incerteza — memórias”.
O título engana: além de lembranças pessoais, o livro reúne reflexões sobre o país que o filho de imigrantes ibéricos só compreendeu diz, ao decidir, lá se vão 33 anos, trabalhar de forma voluntária no falecido presídio do Carandiru.
Há dois anos, fechou as portas do consultório (“com o WhatsApp, virou a ditadura do imediatismo, parecia, lá sim, uma prisão”), e atende semanalmente no Centro de Detenção Provisória (CDP) de Belém , na Zona Leste de SP. De lá, atesta: “tirando os casos graves de Aids, do ponto de vista médico, nada mudou”.
De onde surgiu “O exercício da incerteza?”
Da idade. Estava chegando aos 80 e lembrei que havia começado a escrever um livro, “Por um fio”, aos 36. Queria mergulhar no pano de fundo do trabalho dos oncologistas, a morte. Mas percebi que era incapaz de escrevê-lo.
O que aconteceu?
Tratava de uma paciente austríaca, inteligentíssima, que estava internada, com um tumor avançado, no Sírio-Libanês (em São Paulo). Ela foi ficando muito triste e os filhos sugeriram um psiquiatra. Ela não via muito sentido naquilo, mas, para agradá-los, topou ver o tal psiquiatra. Perguntei como tinha sido, se havia ajudado. Ela: “Honestamente? Tenho 80 anos. Meu marido e eu gostávamos de receber em nossa casa em Viena. Freud jantou lá. Jung também. Esse menino é muito agradável, mas, aos 30, incapaz de entender o que significam oito décadas de vida e a proximidade do fim”. Entendi então que era pretensioso escrever aquele livro. Coloquei na gaveta e decidi que voltaria a ele quando tivesse, eu também, 80 anos.
Mas o livro foi publicado, em 2004...
Sim, porque fiz 60 e tive outra conversa comigo mesmo: “Drauzio, quem disse que você irá chegar aos 80? Mais seguro escrever isso logo!” (risos). E agora, às vésperas dos 80, lembrei da história e tratei de escrever, mas percebi que queria fazer uma reflexão sobre o que aconteceu comigo, com a medicina, com o Brasil, neste período. Nesta viagem pra dentro de mim percebi que sempre me interessaram situações extremas, de vida e morte, de descer pra mundos como o das penitenciárias, de entrar neles e não sair mais.
O que mudou nas penitenciárias do Brasil nos últimos trinta anos?
Do ponto de vista médico, tirando os casos graves de Aids, nada mudou em relação ao Carandiru dos anos 1990. São os mesmos problemas de saúde, tuberculose, DSTs, agora catapora. Em média faço o diagnóstico de três casos de sífilis por semana. Se a cadeia melhorou, o fez por conta do crime organizado, que impôs disciplina e códigos de comportamento que tornaram o ambiente mais tranquilo. A sociedade não fez nada. Há total falta de interesse.
O senhor escreve que entrar naquele universo foi fundamental para compreender o Brasil...
Sim. Em 1989 o Brasil tinha 90 mil presos. Hoje são mais de 700 mil. O que sabemos fazer é prender. Mas não conseguimos melhorar a segurança nas ruas de nossas cidades. A sociedade brasileira é punitiva e preconceituosa, seduzida pelo pensamento simplista de que se todos os ladrões e traficantes forem presos, iremos andar nas ruas sossegados e ninguém irá usar drogas. E acham que isso é possível, mesmo com a escandalosa desigualdade social. Qual emprego um menino que chega à maioridade sem estudo fundamental vai conseguir? O que que estamos oferecendo em troca?
Como viu a operação policial que na semana passada dispersou usuários de crack e prendeu traficantes em SP?
Que ninguém sabe o que fazer. Conheço aquela cracolândia. Sou corredor, e nos domingos minha pista é a cidade. Passo, de propósito, lá no meio. Alguém sempre me reconhece: uma pessoa que tratei no Carandiru, outra na Penitenciária do Estado. Me chamam, eu paro, e converso. As cracolândias resultam de longos processos de desestruturação — familiar, social. Quando se chega naquele estado, é o fim da linha. E não se resolve de um dia pro outro. É preciso uma política pública inteligente, e desde as escolas em tempo integral, o convívio com pessoas mais preparadas e, sim, assistência médica. Não adianta jogar água, dispersar, dizer que a abordagem é mais fácil em grupos menores. Testaram isso? Quem? Onde? O que há é a ilusão de que algo foi feito: “jato d’água, acabamos com a cracolândia". Não, ela volta.
O senhor segue correndo?
Corro três vezes por semana. E há prazer na corrida, que é quando ela acaba (risos). Comecei a correr com disciplina há trinta anos. E sabe quantas vezes acordei alegre, disposto, feliz para o exercício? Jamais! (risos). Mas vejo no meu corpo, na minha mente, como exercitar me ajudou a chegar bem aos 79. Comecei observando meus pacientes: chegava bem na velhice não quem fazia dieta especial, ou não comia carne, mas sim quem se mantinha ativo. Não precisa o exagero de correr maratona, mas homens e mulheres chegam bem aos 80 quando se mexem. Um pouco mais de gordura, um pouco menos? Besteira. O que muda é o movimento. A vida sedentária é destruidora. Não é nem que o exercício faz bem, é que o sedentarismo faz mal.
Nestes 50 anos de medicina, qual foi a maior conquista da Saúde brasileira?
A criação do SUS. Foi a maior revolução da história da medicina brasileira, e com projeção global. Na época, acreditava que demoraríamos muito mais para implantar algo deste monte. Pois o SUS fez muito em pouquíssimo tempo.
O senhor se emocionou com as celebrações ao SUS durante a pandemia?
Muito. Os brasileiros ainda não tinham a noção do que era o SUS, da complexidade do atendimento oferecido, de ser nosso maior programa de transferência de renda. E isso precisa estar na cabeça das pessoas em outubro: eleger um presidente compromissado com o SUS e com um projeto de saúde e de educação públicas. É pra isso, afinal, que serve o governo.
Certamente seria muito pior sem o SUS, mas perdemos oficialmente quase 700 mil pessoas por Covid no país. Qual sua avaliação do combate à pandemia pelo governo federal?
Vivi a epidemia de Aids desde o primeiro momento. E o Brasil, àquele momento, mudou o curso da epidemia em nível global. Boa parte das autoridades sanitárias internacionais nos diziam que não adiantava dar antiviral para os mais pobres, pois os regimes eram complexos (e na época eram mesmo), que jamais iriam tomar vinte comprimidos por dia, que o fariam de forma irregular, e que acabaríamos criando uma epidemia de HIV com resistência aos antirretrovirais. Provamos que estavam errados. E que quando se negativa a carga viral, o ritmo de transmissão sexual cai para quase zero. Foi o que justificou, em seguida, a distribuição em massa de medicamentos na África. Poderíamos também ter dado novamente um show agora: temos o maior sistema público de imunização gratuita do planeta, e com uma população pré-disposta a ser vacinada! Mas, por vários motivos, mas também e principalmente pela maneira como se conduziu o enfrentamento à pandemia, hoje a população confia menos nas vacinas. Basta ver os índices de vacinação para sarampo e poliomielite, por exemplo. Quando você tem a autoridade maior do país lançando dúvidas sobre as vacinas, quando o presidente se empenha em fazer isso, é natural que se pense: “mas então não devo dar vacina ao meu filho? Não é seguro?”. Fui uma criança que teve catapora, sarampo, difteria, tudo o que você possa imaginar, como conto no livro, pois não existiam vacinas. O que se fez agora foi um grande crime. Não consigo encontrar outra palavra: foi crime. As informações são do O Globo/Por Eduardo Graça — São Paulo.
O senhor, que é um ateu convicto, tem fé no futuro do Brasil?
A fé independente da realidade. Se você tem fé em Deus, ninguém precisa provar a você que ele existe, algo impossível. O Brasil, analiso a partir de fatos, e vejo que é possível sim construir um país melhor. Outras nações, muito mais pobres, com muito menos recursos do que nós, deram este salto da saúde e da educação. Vai levar mais tempo do que imaginava quando tinha 20 anos, mas o Brasil ainda será este grande país.