Quando o músico francês Serge Gainsbourg morreu, em 1991, o então presidente da França François Mitterrand lamentou a perda do "nosso Baudelaire, nosso Apollinaire", o homem que tinha "elevado a música ao nível da arte".
Numa carreira de cinco décadas, Gainsbourg abraçou tudo, desde chanson, mambo e yé-yé a rock, reggae e eletrônica, incorporando letras que eram, por sua vez, profundas, espirituosas e provocativas e às vezes absolutamente obscenas. Com frequência empregando um jogo de palavras engenhoso que daria às letras dois, se não três sentidos diferentes, suas composições continuam bastante originais e fora de seu tempo.
Embora ele tenha conquistado um crescente culto desde os anos 1990, o fato de não ser mais apreciado nas audiências de língua inglesa talvez aconteça porque não tenha havido ninguém para fazer por Gainsbourg o que os cantores americanos Mort Shuman e Scott Walker fizeram pelo belga Jacques Brel, abrindo uma porta ao mundo com traduções e performances excepcionais que criaram ótimas versões do trabalho original.
Mesmo em seu país, onde ele foi interpretado por vários artistas, ninguém conseguiu fazer com que as músicas de Gainsbourg fossem suas próprias.
A única pessoa que chegou perto foi a britânica Jane Birkin, a musa e amor de Gainsbourg, cuja incomparável conexão lhe deu confiança para reinterpretar as músicas de uma forma totalmente original, primeiro com saborosas versões com toque árabe no álbum Arabesque, de 2002; e mais recentemente com a gravação deLe Symphonique, no qual, inspirada pelas influências clássicas de Gainsbourg, ela executa as músicas com a participação de uma orquestra sinfônica. Birkin se apresenta em novembro em São Paulo.
Como Birkin explica à BBC Culture, "com frequência Serge tocava música clássica como Chopin e Brahms para pessoas que ele amava. Ele queria nos dar o melhor, embora ele fosse perfeitamente capaz de compor sozinho".
Em sua maneira encantadoramente autodepreciativa, ela diz que ficou preocupada de parecer levemente pretensiosa ou de que a orquestra tivesse que reduzir o volume já que ela não tem uma voz muito forte, mas na verdade os resultados são sublimes, dando nova vida não apenas à música de Gainsbourg, mas também às músicas que ele escreveu para Birkin e a atriz Isabelle Adjani.
O desejo de Birkin de descobrir novas formas de interpretar Gainsbourg é um ato de gratidão. "Eu sabia que devia isso a ele. Se pudesse levá-lo ao redor do mundo e fazer as pessoas entenderem o escritor extraordinário que ele foi, eu poderia devolver um pouco do que ele me deu", explica.
No entanto, ela tem noção de que seu desejo de levar o trabalho de Gainsbourg a novas audiências é dificultado por uma falta de compreensão de sua obra. "Para quem não vive na França, não sei se se compreende a beleza de seus poemas. Variations sur Marilou é o mais erótico poema que existe. Mas acho que muitos não entendem isso".
O próprio Gainsbourg sempre soube que versões em inglês de suas músicas poderiam trazer-lhe mais reconhecimento, e a ausência delas o frustrava. "Ele não entendia por que eles não usavam sua música para covers como faziam com (o cantor francês) Aznavour."
Birkin ouviu as versões traduzidas pelo australiano Mick Harvey, mas é educadamente desdenhosa. "Sim, mas são as músicas mais simples. São as que já têm bastante anglicismos, então dá para se virar". Embora ela admita que "é muito difícil para as pessoas não serem fiéis a alguém tão original". Ela também tem a consciência da dificuldade de traduzir as músicas com duplo sentido. "Eu tentei fazer isso em Fuir le Bonheur, uma das músicas mais simples. E não foi fácil".
Ela própria já abordou o compositor americano Stephen Sondheim no passado. "Eu achava que ele tinha sofisticação", mas infelizmente ele nunca respondeu. "Talvez ele nunca tenha recebido a carta", devaneia. "Eu não sabia como enviá-la. Mandei para um lugar onde assisti ao seu musical em Nova York".
Seguindo uma sugestão de seu irmão Andrew, ela cogita contatar uma universidade britânica para uma tradução dupla: "Uma para a rima e outra para o significado".
Admirador britânico
Trata-se de uma possibilidade atraente, e se em algum momento acontecer, a escolha óbvia para interpretar as músicas seria, para muitos, o britânico Jarvis Cocker, grande admirador de Gainsbourg, que certamente aprecia a dificuldade da tradução. Sua habilidade de trazer algo novo e ainda assim visceral à versão inglesa de I Just Came to Tell You That I'm Going no álbum em tributo ao MonsieurGainsbourg foi possível por sua insistência em traduzir a música por conta própria, depois de receber uma versão que ele classificou como "não sendo nem inglês".
"Antes era 'Se eu estou aqui é para te dizer que eu devo sair', ou algo assim", ele conta à BBC Culture. "E até com o meu fraco francês eu notei que certamente seria melhor dizer 'Eu só vim dizer que estou indo'".
Ele modestamente afirma que foi "uma coisa egoísta" a se fazer, já que ele era um grande fã e queria ser parte do projeto, "e eu simplesmente não podia cantar a tradução que tinha recebido e ficar satisfeito. Se você vai cantar uma música, você precisa colocar algo de si nela".
Ele pôs a mão também no concerto em tributo ao álbum Melody Nelson que foi realizado há alguns anos na casa de shows Barbican, em Londres, mas diz que não ficou muito satisfeito com o resultado, embora sua lacônica interpretação falada se encaixasse perfeitamente à atmosfera da música.
Quando questionado se ele gostaria de interpretar mais de Gainsbourg, ele pondera um pouco antes de responder, "Eu teria que entendê-lo um pouco melhor. Não sei. Agora que você está trazendo isto, penso que 'sim, talvez seja uma boa ideia'". Ele está curioso para ouvir as intenções de Birkin, já que uma vez ele tentou fazer com que a editora britânica de partituras Faber Music traduzisse suas músicas. "Talvez eu devesse falar com ela", cogitou. "Isto depende muito de se conseguir a pessoa certa para fazê-lo, mas acredito que seja válido".
Uma colaboração Birkin/Cocker é algo que parece interessante a Bob Stanley, compositor da banda inglesa Saint Etienne e especialista pop por excelência. Mas ao considerar a forma como interpretar as músicas de Gainsbourg, ele enfatiza a dificuldade de se trabalhar seus arranjos. Embora não tenha escutado o álbum de Birkin, ele acredita que a abordagem dela é o caminho certo. Para qualquer versão alternativa funcionar e não soar como secundária, "seria preciso ter alguém de igual grandeza para fazer seus próprios arranjos".
Ele também acredita que enfatizar a natureza gaulesa da música seria um grande erro: "Se alguém tirasse o toque francês da interpretação, poderia funcionar. Afinal de contas (o álbum) Melody Nelson era de Sunderland (cidade do norte da Inglaterra)".
Está claro que se Cocker for persuadido a ser o Scott Walker de Gainsbourg, ele precisa encontrar não apenas o seu Mort Shuman, mas também um incrível arranjador contemporâneo para lhe fazer justiça. Vamos torcer para que eles consigam, pois, como diz Birkin, "Serge ficaria muito lisonjeado de ser cantado em inglês".