O filósofo chinês e estrategista militar Sun Tzu, famoso pelo livro "A arte da guerra", já dizia, cinco séculos antes de Cristo, que é necessário conhecer o inimigo para ganhar uma guerra. Um ano depois de o governo federal lançar o programa "Crack, é possível vencer", destinando R$ 4 bilhões até 2014 para combater o avanço da droga no país, o inimigo permanece uma incógnita.
Números obtidos apontam que, em 2012, o governo liberou R$ 738,5 milhões para combater o que considera uma epidemia. Desse montante, R$ 611,2 milhões foram para o Ministério da Saúde, R$ 112,7 milhões para o Ministério da Justiça e R$ 14,6 milhões para o Ministério de Desenvolvimento Social e Combate à Fome.
O dinheiro, porém, pode estar sendo gasto às cegas. Apesar de admitir que considera a droga uma "epidemia" no país, o governo reconhece que não sabe o perfil dos usuários nem onde eles estão nem qual é a melhor forma de tratá-los (leia abaixo). "Estamos rastreando e assumindo isso, mas não é fácil mensurar, porque é um problema que não temos dimensão e ainda descobrindo qual é a melhor política pública para combatê-lo, mas estamos correndo atrás", diz Helvécio Magalhães, secretário nacional de Atenção à Saúde e responsável pelo tema do crack no Ministério da Saúde.
É possível vencer?
Lançado em 7 de dezembro de 2011, o plano "Crack, é possível vencer" prevê um trabalho conjunto entre os governos federal, estaduais e municipais nas áreas da saúde, segurança pública, defesa de fronteiras e assistência social.
Apesar de ser um ponto de partida para resolver o problema, ainda há grandes desafios a serem vencidos, segundo especialistas e integrantes do governo.
O crack é uma pedra branca, derivada da cocaína, geralmente queimado em cachimbos para ser consumida. Os efeitos são sentidos em minutos e passam rápido, provocando problemas neurológicos, respiratórios, entre outros. O elevado grau de dependência faz com que os usuários gastem muito dinheiro para manter o vício e, em alguns casos, passem a morar nas ruas e viver uma rotina de consumo coletivonas chamadas cracolândias.
Até agora, 13 estados e o Distrito Federal aderiram à parceria com o governo federal para combater o crack, permitindo a abertura de 574 novos leitos, 4,1% dos 13.868 que a área da Saúde quer criar até 2014. Pelo acordo, estados e municípios recebem recursos para capacitar profissionais e construir unidades de atendimento aos dependentes, além de equipamentos para policiais e guardas municipais.
Ao assinar a parceria, o estado se compromete a adotar as "regras" do Planalto no combate ao crack: realizar internações involuntárias (contra a vontade) quando um médico vê risco de vida para o paciente e concentrar esforços no tratamento do usuário, não na repressão policial.
Repasse de recursos
Pelo programa, o dinheiro, antes usado para repressão policial da venda da droga, agora é empregado para tratamento de dependentes. O investimento, no entanto, não tem efeito garantido. Segundo especialistas, o governo pode estar desperdiçando os recursos por desconhecer a dinâmica do crack no país, não suprir a grande procura por leitos e apoiar a internação involuntária.
"O Ministério da Saúde é incompetente em transferir recursos públicos para os municípios. Qual clínica de desintoxicação que foi inaugurada com recurso federal? O governo federal demorou a responder sobre o problema do crack e acho que ainda não respondeu. Acho tudo isso uma enrolação", disse Ronaldo Laranjeira, coordenador da Unidade de Pesquisa em Álcool e Drogas (Uniad), da Universidade Federal do Estado de São Paulo (Unifesp).
Panorama nacional em levantamento
A base do plano de combate ao crack do governo federal é uma pesquisa encomendada pela Presidência da República à Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), em maio de 2010, ao custo de R$ 6,914 milhões. O diagnóstico, no entanto, ainda não está pronto. Segundo o professor e coordenador da pesquisa, Francisco Inácio Bastos, não há previsão para o estudo terminar.
Outro trabalho, da Universidade Federal de São Paulo, apontou o país como maior mercado mundial do crack, onde 2% da população faz uso da droga (2,8 milhões de jovens e adultos). De acordo com o estudo, o Sudeste concentra o maior número de usuários (46%), seguido pelo Nordeste (27%) e pelo Norte (10%).
Os dados, porém, são contestados pelo governo. "Temos uma epidemia. Mas, como nas grandes epidemias do século 20, não há dados qualitativos e quantitativos disponíveis. O crack não é como a Aids ou a tuberculose, que você pode fazer um exame de sangue e saber se está contaminado", diz Helvécio Magalhães.
"O crack é uma praga difícil. O mundo todo ainda está aprendendo qual é a melhor forma de lidar com ele e descobrindo qual é a melhor política pública para combatê-lo", completa.
Para Joaquim Melo, presidente da Associação Brasileira de Estudos do Álcool e outras Drogas (Abead), as estratégias adotadas estão equivocadas. "É um erro muito grande, o que está sendo feito é totalmente pirotécnico. O governo federal está preocupado com o problema, mas tem de fazer novas clínicas e equipá-las, qualificar profissionais. O que os órgãos públicos querem pagar por paciente não cobre nem a hotelaria do paciente, nem a comida".
Já o psiquiatra Paulo Roberto Telles, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), questiona o uso do termo "epidemia" para o problema. "Tivemos, entre 2006 e 2010, uma procura pelo atendimento ambulatorial de dependentes subindo exponencialmente. Mas, desde o ano passado, esta demanda vem diminuindo. Não é possível saber se isso reflete só esta realidade da região, já que nas ruas é visível o número de usuários. Mas vale questionar o que realmente está acontecendo", pondera.
"Não temos dimensão do problema"
Na sede da Fiocruz, no Rio de Janeiro, o professor Francisco Inácio Bastos reúne mais de 25 mil questionários, amontoados em um contêiner, que serão usados na pesquisa que pretende dar uma cara ao usuário de crack brasileiro. O responsável pelo estudo encomendado pelo governo aponta dificuldades em realizar um levantamento preciso sobre o tema.
"Temos que tentar sair da questão se há ou não epidemia. Na verdade, não temos dimensão e não sei se é possível um levantamento que possa corroborar ou refutar esta tese. A única forma de se chegar a todos os municípios do país seria através do Censo. Mas a amostra domiciliar não mostra a realidade das ruas. O usuário de crack não fica em casa esperando o pesquisador para responder com que frequência consome".
"Só vamos parar a pesquisa quando não houver mais um centavo ou alguém nos mandar parar ? o que ocorrer antes. Já temos mapas, entrevistas pessoais e testes que cobrem todo o país, mas que não se destinam a estimar quantos usuários há em uma cidade, mas, sim, em um conjunto de cenas. Já nas capitais, conseguiremos estimar um percentual da população que usa o crack", explica Bastos.
Entrevistadores ainda estão nas ruas de vários estados para concluir o levantamento, que englobará a realidade de mais de 1,2 mil cracolândias no país.
Maior mercado do mundo?
Coordenadora do programa "Crack, é possível vencer", a secretária Nacional de Segurança Pública, Regina Miki, não concorda com a visão de que o Brasil lidera o ranking de uso da droga.
"Em hipótese alguma somos o maior mercado. Nós temos um grande consumo, sim, mas não sabemos se é o maior ou o menor (do mundo), isso não tem como aferir", acredita ela.
A pesquisadora da Unifesp Clarice Madruga, que realizou o Levantamento Nacional de Álcool e Drogas (Lenad) questionado por Regina Miki, diz que o dado foi obtido comparando-se a amostra nacional com números do Escritório da ONU sobre Drogas e Crime, que estima a quantidade de droga consumida no mundo.
"Não temos dados ? nem aqui e nem nenhum outro levantamento feito no Brasil atualmente ? para afirmar que existe uma epidemia, pois seria necessário conhecimento histórico do uso. Temos só o número de usuários no momento e não sabemos se aumentou ou diminuiu nos últimos anos. Não temos uma série histórica que embase isso", diz Clarice.
Erro de estratégia
Mesmo sem ter a real dimensão do inimigo oculto, as autoridades reconhecem que o governo "estava perdendo" a guerra contra o crack porque demorou mais de 20 anos para agir. Para Regina Miki, o país "começou a virar o jogo? em 2012 ao mudar o enfoque das ações.
"Nós assumimos que a guerra, não, mas a batalha estava perdida. E, ao assumirmos, conseguimos ver que o foco estava errado: ao invés de tratar o caso com visão na segurança, nosso enfoque passou a ser o usuário. Se persistíssemos na tendência de usar a segurança na frente do usuário, nós continuaríamos perdendo batalhas".
Visão humana do viciado
O plano federal apoia as internações involuntárias, mas não as compulsórias. "Tem que ter um profissional capacitado que avalie que há risco e que o tratamento é necessário. Saindo do estado de choque, ele pode então ter a voluntariedade do tratamento. Nós precisamos mostrar ao usuário um outro lado da vida", afirma Regina Miki.
Magalhães, do Ministério da Saúde, concorda com o ponto de vista. "Nós apoiamos a internação involuntária em situações de risco de morte. Estamos tentando organizar uma rede mais presente, com ambulatório nas ruas, em que os médicos e enfermeiros vão conversando diariamente com eles nas cracolândias e tentando adquirir a confiança deles para o tratamento", diz. "Não se sabe ainda exatamente o que fazer com eles. O mundo todo está aprendendo", explica.
Para Joaquim Melo, a estratégia de atendimento ao dependente químico de forma ambulatorial é "ineficaz". "O cuidado emergencial não resolve. A solução é a internação, seja ela qual fora. Os consultórios móveis não vão solucionar o problema, vai ajudar a conscientizar o dependente da necessidade de tratamento, mas não será a fórmula de tratamento".
Para o presidente da Comissão de Estudos sobre Educação e Prevenção de Drogas e Afins da OAB de São Paulo, Cid Vieira de Souza Filho, a internação contra a vontade da pessoa só deve ser realizada em "último caso".
"Somos contra a internação compulsória, e a involuntária deve ser usada com parcimônia. É preciso dar o livre arbítrio para a pessoa, se ela tiver discernimento, para escolher ou não se quer ser internada", defende.
No caso de adolescentes, porém, o advogado defende que "o estado atue de forma enérgica para garantir a vida deles". "Muitas crianças se prostituem nas ruas apenas para comprar o crack. Mães vendem os filhos por poucos reais. Nestes casos, temos a obrigação de atuar", diz. Cid Vieira, porém, pondera principalmente em cidades do interior do país, não há estabelecimentos e agentes "adequados" para isso.
O Ministério da Saúde entende, porém, que a guerra ainda pode ser ganha. "O grande foco hoje passou a ser o tratamento, a saúde do usuário. O próprio governo americano admitiu que estratégias de erradicação da cocaína não estavam fazendo efeito sozinhas. Ainda não se sabe exatamente o que fazer, não se tem um padrão na ONU de como tratar esta dependente de crack. Está todo mundo aprendendo qual é o caminho a trilhar, mas este é um dos projetos prioritários do governo", acredita Magalhães.