Após três meses como ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Luís Roberto Barroso chegou a uma conclusão: o volume de trabalho é irracional. Ele propõe a transferência do foro especial para autoridades para uma vara especializada em Brasília para resolver parte do problema. Barroso defende o direito das mulheres ao aborto, cobra das autoridades uma reforma política e propõe que os candidatos à Presidência registrem oficialmente sua sugestão sobre o tema. Um dos primeiros votos de Barroso no STF foi decisivo para dar aos condenados no mensalão o direito a um novo julgamento. Ele diz que votou certo e que o STF deve ser imune às paixões da opinião pública.
Agora que o senhor já está há um tempo no tribunal, pode avaliar: o Supremo é como o senhor imaginava, ou é diferente?
Embora eu conhecesse o tribunal como um observador externo, o volume e a diversidade do trabalho ainda assim me surpreenderam, assim como a quantidade de coisas que eu acho que não deveriam estar lá. Há no Supremo um varejo de miudezas maior do que o que eu imaginava e que consome muito o tempo dos ministros. Parte do meu trabalho e da minha equipe é identificar, num oceano de processos, o que justifica uma atuação do Supremo. Em três meses de tribunal, confirmei o meu sentimento de que é preciso fazer uma revolução no modo como o Supremo atua, sobretudo no modo como escolhe sua agenda.
Como fazer isso?
Acho que o sistema da repercussão geral, que é o filtro do que pode chegar ao Supremo, precisa ser aperfeiçoado. Todos os tribunais constitucionais do mundo, pelo menos os mais importantes, de alguma forma selecionam as causas que vão julgar. Uma ideia que eu já tinha desde antes de entrar para o Supremo e confirmei é a de que o tribunal devia escolher as causas que vai julgar combinando um critério quantitativo com um critério qualitativo. O critério quantitativo envolve uma definição realista de quantos casos o Supremo pode julgar em um ano.
E como fica o foro privilegiado? O senhor acha que o supremo é o espaço para julgar autoridades?
Como regra geral, não. Uma das evoluções que precisam ser feitas é esta: uma drástica redução no foro por prerrogativa de função. Há muitas razões para isto. As principais são, em primeiro lugar, ele não é muito republicano, porque trata desigualmente as pessoas. Em segundo lugar, produz uma certa desfuncionalidade, porque o Supremo não é um tribunal preparado para conduzir processos em primeiro grau, ouvindo testemunhas, produzindo perícias, fazendo interrogatório.
Mas o senhor acha que deve haver exceções?
Acho que sim, o presidente da República, o vice-presidente da república, talvez os presidentes de Poder, os próprios ministros do Supremo, para não serem julgados por um tribunal inferior ao Supremo. Talvez o procurador-geral da República. Pouca gente. Agora, acho que era preciso conceber um sistema diferenciado. Tenho uma proposta que já sustentava antes de ir para o Supremo: a criação, em Brasília, de duas varas federais de primeiro grau especializadas, uma em matéria criminal e outra em matéria de improbidade. Estas duas varas concentrariam as ações contra todas as autoridades que hoje têm foro privilegiado no Supremo.
Mas o senhor acabaria criando um foro privilegiado diferente, só tiraria ele do Supremo. Continuaria sendo um tratamento privilegiado para algumas pessoas?
Não diria privilegiado. Diria diferenciado. A autoridade pública precisa de algum grau de proteção institucional. Seria muito ruim que um ministro de estado por exemplo atuando politicamente, e portanto sujeito às injunções da política e à maldade, tivesse que responder a ações em todo o país. O sujeito tem que dispersar sua atividade litigando em juízo. Portanto, eu acho que concentrar em uma vara em Brasília dá uma certa proteção institucional sem que isso signifique privilégio.
Isso abrangeria também os processos do STJ, que cuida de governadores?
Seria possível cogitar de se fazer uma vara específica com o que está hoje no STJ. Essa é uma ideia embrionária, para o debate público. Antes de ir para o Supremo, meu principal papel na vida, tanto como professor como advogado, nos últimos anos, era participar do debate público. Ser uma pessoa que pudesse contribuir com ideias. Gosto de participar do debate público. Ser ministro me impõe algumas limitações do que eu posso falar. Tenho que ter algum grau de autocontenção. Mas faço parte de uma geração que de certa forma ajudou a construir o país logo após os anos de chumbo, faço parte de uma geração que tinha opinião sobre tudo. Gosto de participar, gosto de opinar, gosto do debate público. É por essa razão que faço essas sugestões. É por essa razão que fiz, pro bono, ações como a das uniões homoafetivas, anencefalia, nepotismo, pesquisas com células-tronco embrionárias.
Há temas que o Supremo deveria tratar? Que mereceriam ainda uma definição mais clara?
Nem tudo que hoje é premente no Brasil comporta uma solução judicial. Acho que há muitas questões importantes no país que dependem de decisões políticas, e o Supremo não é o espaço mais adequado para as decisões políticas, salvo por exceções.
Mas quando o Congresso não legisla...
O Supremo deve tomar decisões que têm impacto político basicamente em três situações. A primeira, quando o legislativo não tenha podido ou conseguido legislar sobre uma questão importante. Em segundo lugar, quando esteja em jogo um direito fundamental de uma minoria. Em terceiro lugar, para a proteção das regras do jogo democrático. São esses os três grandes papéis políticos de uma corte constitucional. (Em relação à) proteção das minorias, o Supremo fez, e bem, na questão das uniões homoafetivas. Em toda parte do mundo, direitos das minorias, homossexuais, negros, mulheres, dependem frequentemente do poder judiciário. As minorias, por serem minorias, não conseguem prevalecer no processo político majoritário. Então, para avançar uma agenda de direitos fundamentais das minorias muitas vezes só é possível fazer isso via judiciário. De certa forma, foi o que aconteceu nos Estados Unidos na questão do aborto em 1973. Transportando para o Brasil, acho que foi o que aconteceu nas uniões homoafetivas, na questão das interrupções das gestações de fetos anencefálicos.