Lucrécio Arrais
A psicanalista Paula Fontenelle é uma autoridade internacional em saúde mental. Em tempos em que o suicídio permanece como uma mazela dolorosa da sociedade, onde vidas se perdem para sofrimentos e questões que poderiam ser trabalhadas com o acompanhamento adequado, é preciso ressignificar um tabu que permeia todas as sociedades, sejam orientais ou ocidentais. E é preciso falar sobre isso o ano inteiro.
Em entrevista relevadora ao Jornal Meio Norte, a psicanalista Paula Fontenelle, que atualmente vive nos Estados Unidos e é autora do livro “Suicídio: O Futuro Interrompido” e do site https://www.prevencaosuicidio.blog.br/, mostra como o tema precisa ser trabalhado de forma responsável.
Lucrécio Arrais: Qual o maior desafio em saúde mental no atual momento?
Paula Fontenelle: Acesso. Esse é um desafio mundial. Aqui nos Estados Unidos, estima-se que praticamente metade dos sessenta milhões de americanos diagnosticados com transtorno mental não fazem tratamento. E essa parcela diz respeito apenas àqueles que já passaram por um profissional de saúde e receberam diagnóstico, imagine a quantidade de pessoas que sofrem caladas por falta de acesso. No Brasil, são poucos os seguros de saúde que pagam esse tipo de acompanhamento. Muitas vezes, a pessoa começa, mas o limite de consultas faz com que ela interrompa o tratamento, que geralmente demora mais que uma simples consulta a especialista que te passa remédio e resolve o problema. Por trás desse panorama está o histórico estigma associado aos transtornos mentais. Ainda temos em mente a imagem de “sanatórios” com pessoas fora de controle e perigosas.
LA: A pandemia do novo coronavírus deixou sequelas difíceis de superar?
PF: Sem sombra de dúvida, a pandemia exacerbou problemas que já existiam e criou novos. O mais destrutivo de todos foi o isolamento porque somos seres intrinsecamente sociais. Isso vem de nossos ancestrais que precisavam viver em bandos para sobreviver. Evoluímos como espécie, mas, por uma questão de sobrevivência, o cérebro ainda identifica a solidão como indicativo de perigo, algo a ser evitado. Essa é uma das razões pelas quais sofremos quando nos sentimos sozinhos. Infelizmente, a negação, que é um dos mecanismos de enfrentamento desse perigo, tomou proporções destrutivas em várias partes do mundo. Ainda acontece aqui nos Estados Unidos e aí no Brasil. A negação pode ser algo positivo. No luto, por exemplo, a pessoa evita encarar a realidade até estar em condições emocionais para processar a perda. Mas, quando esse mecanismo se aplica a algo como a pandemia, o resultado é a manutenção da doença e ampliação das mortes.
LA: O setembro amarelo é um período importante, mas como estabelecer a cultura de que devemos falar de saúde mental o ano inteiro?
PF: Você tocou num assunto importante. De fato, o setembro amarelo catalisou um esforço coletivo de quebra do silêncio, mas não é suficiente. Precisamos de iniciativas mais abrangentes. Os setores privado e público precisam se engajar nesse processo. Semana passada fiz uma “live” para uma empresa* de Teresina e essa foi a primeira vez que fui procurada pelo setor privado. A tendência é achar que esse tipo de iniciativa deve partir do governo. Faz parte de nossa cultura patriarcal que enxerga no setor público um poder absoluto. Se cada um fizer sua parte, ampliaremos o combate ao estigma que acompanha o tema de saúde mental.
LA: De que maneira podemos treinar o olhar para observar pessoas do nosso convívio que estejam em sofrimento emocional?
PF: O primeiro passo é quebrar o silêncio porque seu impacto é pernicioso. O silêncio impede que a pessoa compartilhe sua dor e procure ajuda, seja especializada ou não. Eu trabalho no combate ao suicídio desde que meu pai morreu dessa forma, em 2005, e sei o quão isolados esses indivíduos se sentem. Eles temem falar do assunto porque acham que ninguém vai entender o que estão passando - e de fato, ninguém entende a dor do outro. Mas o pior não é a falta de conexão com essa dor, e sim, o preconceito em relação ao suicídio. É preciso estar disposto a ter essa conversa sem julgamentos e opiniões pré-estabelecidas. Esse não é o momento para expressarmos o que nós achamos certo e errado ou dar conselhos. Quando alguém se encontra numa dor tão intensa que enxerga no suicídio uma saída, precisamos acima de tudo, ouvir. O psiquiatra americano, Edwin Shneidman diz algo que sempre guia o meu trabalho: “As principais perguntas que devemos fazer a alguém que está pensando em suicídio são ‘onde dói’ e ‘como posso ajudar’? Parece simplista, não é? Mas se a gente começar por aí, e não com julgamentos do tipo “mas como pode pensar nisso” e “mas você tem tudo”, iniciamos a conversa de maneira acolhedora, ao invés de apontar o dedo para quem já está se sentindo um fracassado, alguém que já carrega uma bagagem de culpa enorme. Eles precisam saber que você está disposto a entender, a dar apoio, e ajudá-lo a dar o próximo passo em direção a outras respostas. É importante também identificar alguns sinais indicativos de que a pessoa já avançou para o planejamento do suicídio.
LA: Quais seriam esses sinais?
PF: O suicídio não é algo que aparece do nada, um ato impulsivo que surge de repente, e a pessoa geralmente emite vários sinais. Eu trabalho com a ideia de um contínuo que começa com pensamentos suicidas e caminha passando por ideação, ideação com intenção de morrer, planejamento, tentativa e morte. Isso é importante porque é necessário identificar onde a pessoa se encontra. Os sinais vermelhos indicam que o indivíduo já está pelo menos na fase de ideação com intenção de morrer, ou mesmo em estado avançado de planejamento. Ele começa a se despedir das pessoas, por exemplo. Liga para amigos, familiares, com um tom nostálgico, lembrando de momentos do passado. Também não fala mais do futuro. Um dia antes de morrer, meu pai visitou a minha irmã mais velha. Várias vezes, ela perguntou se ele iria me buscar no aeroporto naquela semana e, ao invés de responder, ele falava de uma viagem que fez comigo. Ela achou isso muito estranho, mas não sabia o que significava. Também faz parte desses sinais, organizar a vida: se desfazer de objetos, mesmo aqueles que têm valor sentimental, pagar dívidas, distribuir os bens materiais e financeiros. Meu pai fez tudo isso. Se desfez de coleções, abriu conta conjunta comigo e me enviou uma carta dizendo o que eu deveria fazer com seus bens. Eu só a recebi dois dias depois de sua morte.
LA: A crise financeira também impulsiona o sofrimento emocional?
PF: Qualquer tipo de crise pode ser um fator que leva ao suicídio. É importante esclarecer que o suicídio nem sempre está associado a transtornos mentais. Em 2018, aqui nos EUA, 54% das mortes voluntárias não estavam ligadas a transtornos, e sim, a crises pessoais. Você pode estar pensando: mas todo mundo passa por crise. Sim, mas existe um elemento central que leva a pessoa a achar que o suicídio é a única saída: a falta de esperança.
LA: E as crianças? Quais comportamentos os pais devem notar?
PF: Mudança de comportamento. Adulto fala, criança age. Alterações de humor, agressividade em excesso, mudança na rotina do sono e alimentação, isolamento, comportamento de risco. Às vezes, as crianças demonstram interesse recorrente no tema da morte: ouvem música, assistem filmes, falam sobre isso continuamente.
LA: E em idosos?
PF: O maior número de suicídios ocorre nessa faixa etária porque eles se sentem sozinhos, acreditam que ninguém mais precisa deles, e são acometidos por doenças, além de terem vivenciado grandes perdas ao longo da vida. Por isso, é preciso ficar atento para frases do tipo “minha vida não tem mais sentido” e “ninguém se importa comigo”. Preste atenção aos sintomas de depressão, à possível relutância em comer, em tomar medicações, a tendência ao isolamento, e a falta de interesse em atividades que antes eram importantes para eles.
LA: Quais alternativas pessoas em sofrimento emocional podem adotar para sair do quadro?
PF: Procure ajuda, e com isso, não quero dizer necessariamente que seja de um profissional. Muitas vezes, encontrar apoio em um amigo, na família, em grupos de apoio, já ajuda. Enfrentar esse momento sozinho cria um ciclo destrutivo porque a solidão alimenta a dor psíquica e a dor faz com que a pessoa se isole. É imprescindível quebrar esse ciclo. Sempre lembrar que só um profissional pode fazer o diagnóstico de transtorno mental. Não há nada de errado em ter depressão, ansiedade, o que for. Após a morte de meu pai, tomei remédio para depressão. Como eu já sabia dos sintomas, procurei um psiquiatra quando notei que havia algo de errado e o apoio de amigos e família não eram suficientes. O tratamento foi crucial para que eu pudesse processar a morte dele de uma maneira mais saudável.