A força das ruas, evidenciada nos dias tumultuados em que na Câmara dos Deputados se tentava empurrar de goela abaixo dos cidadãos e cidadãs brasileiros o famigerado projeto da criminalização do aborto, foi marcante, definitiva, para acuar os parlamentares de direita, conservadores, e aos extremistas de direita que querem sepultar avanços sociais e éticos já estabelecidos em nossa legislação.
Sentindo o peso das manifestações que tomaram conta das ruas de grandes, médias e pequenas cidades brasileiras, num nítido recado de que as vigorosas manifestações contrárias representavam um anseio de luta da imensa maioria da população, uma recusa clara aos retrocessos, a conhecida e poderosa “bancada evangélica” decidiu dar um passo atrás em pontos essenciais do projeto de Lei 1.904, que equipara o aborto após a 22ª semana de gestação ao mesmo peso do crime de homicídio.
O principal recuo da bancada evangélica foi quanto ao dispositivo contido no abominável projeto construído por um pastor evangélico, o deputado federal Sóstenes Cavalcante, do PL do Rio de Janeiro, de excluir do texto da proposta o dispositivo que criminaliza vítima do estupro, ou seja, deixa de ver crime no aborto praticado por mulher que engravidou em decorrência de grave violência sexual, uma intenção grotesca e desumana que incluía até garotas de 11 a 14 anos de vida que engravidassem nessa circunstância.
O que se vê, com um certo alívio, nessa recente posição da bancada evangélica, não é que os integrantes desse grupo tenham de repente ficado bonzinhos, civilizados, tolerantes e atentos a uma realidade nacional preocupante quanto às questões da gravidez precoce, dos estupros, da violência contra mulheres e da prática do aborto. Mas, com rigorosa clareza, o fato de que só as ruas, as manifestações populares, a disposição incansável para o embate aberto e corajoso, podem ser decisivas para mudar posições retrógradas e impedir o avanço de fúrias extremistas, rotuladas de moralismo, que a cada dia parecem mais presentes no nosso convívio coletivo.
Uma pesquisa realizada dias antes de a Câmara ter suspendido a discussão sobre o projeto do aborto, jogando seu debate para o segundo semestre legislativo, pelo Instituto Datafolha revelava que 66% das pessoas entrevistadas revelaram-se contra o projeto gestado pela extrema-direita com risco de aprovação, mas nem esse resultado de consulta pública foi eficiente para fazer os defensores da estúpida ideia pararem. Só as ruas foram capazes de determinar esse merecido recuo.
O protagonismo das ruas precisa ser urgentemente recuperado no Brasil. Esse resgate da participação social, livre de amarras e rotulações partidárias, em benefício do interesse comum e em defesa das instituições democráticas, torna-se crescentemente importante, e foi, em passado recente, como no movimento das Diretas Já, fundamental para que o país se livrasse de uma história de autoritarismo, de supressão de liberdades, e conquistasse avanço expressivo nos seus direitos s e na construção de uma sociedade possível de desfazer desigualdades gritantes que até hoje nos inquietam.
Os acontecimentos recentes, no Brasil e no mundo, demonstram que a ultradireita tem avançado e tem sabido utilizar a comunicação para atacar o valor essencial de nosso viver democrático, que é o pertencimento coletivo. Sua tática é a do divisionismo, da fratura, da ruptura. Daí, ser necessário que estejamos dispostos a nos contrapor a isso, aumentando o volume de nossa voz e a força de nossas bandeiras de luta para impedir que eles cresçam além do que têm crescido e que esmoreçam diante da nossa capacidade de resistência.