A indicação do extraordinário filme brasileiro "Ainda Estou Aqui" para concorrer em três categorias do prestigiado e valoroso OSCAR, incluindo, pela primeira vez na história, a de Melhor Filme, abre nosso olhar para um processo virtuoso de retomada do cinema nacional aos seus melhores momentos.
O formidável desempenho de Fernanda Torres, por seu papel como Eunice, a guerreira que dedicou a vida a esclarecer a prisão, sumiço e morte de seu marido, Rubens Paiva, assassinado durante a Ditadura Militar, já havia sido premiado em outros festivais e aplaudido pela crítica, ganhadora que foi do prêmio de Melhor Atriz no festejado Globo de Ouro e, portanto, era esperado como merecedor também de nova indicação.
Mas ver o filme brasileiro apontado como concorrente ao prêmio de Melhor Filme, além de Melhor Filme Estrangeiro, é um fato inédito, que enche de orgulho todos os artistas nacionais, envolvidos ou não no filme, e contribui para elevar a autoestima dos brasileiros, por sabermos que estamos fazendo muito bem essa arte monumental que chegou ao Brasil pela primeira vez lá pelos idos de 1896.
Nesses quase 130 anos da exibição do primeiro filme em terras brasileiras, aprendemos não apenas o gosto pelas exibições, mas também a arte de fazer cinema, daí o registro de que já em 1897, surgiria o primeiro filme gravado no Brasil, que teria sido a Chegada do Trem em Petrópolis. E na virada dos séculos 19 e 20, entramos firmes na produção de pequenos documentários, um passo para o surgimento de filmes de longa metragem.
Nos anos 50 do século passado, o Brasil ganharia impulso com o Cinema Novo, com foco muito forte na defesa dos interesses e direitos das classes trabalhadoras, com recorrentes denúncias sobre a liberdade e as condições sociais da grande massa de brasileiros, daí esse formato ficar conhecido por muitos como "estética da fome."
Nas suas diversas etapas, de sobe e desce, de crise e reinvenção, o cinema brasileiro foi conquistando o mundo com produções notáveis, como Deus e o Diabo na Terra do Sol(1964),O Pagador de Promessas(1962, Cidade de Deus(2002), Macunaíma (1969), O Bandido da Luz Vermelha(1968), Tropa de Elite(2007), (Vidas Secas(1963), O Auto da Compadecida(2000), e do premiadíssimo Central do Brasil(1998) dentre tantos outros.
Há cerca de 10 dias, logo após ser premiada com o Globo de Ouro de Melhor Atriz, Fernanda Torres concedeu uma longa e lúcida entrevista a um dos principais jornais de Portugal, O Público, na qual analisa esssa maravilhosa e difícil trajetória do cinema brasileiro, dizendo que "de tempos em tempos querem matar o nosso cinema, mas ele é um fênix", referindo-se à sua imensa capacidade de superar-se e reerguer-se.
E Fernanda Torres está coberta de razão ao lembrar o enfrentamento que os valorosos artífices do cinema nacional têm de empreender para barrar e superar os preconceitos e a má-vontade que algumas pessoas, muitas delas políticos com poder de mando, apresentam contra essa arte nacional. É o que fizeram agora, diante do prestígio que Ainda Estou Aqui começou a ganhar. Logo tentaram desqualificar o filme e espalharam a mentira de que ele fora produzida com as "facilidades" da Lei Rouanet. O filme foi todo feito sem um único centavo de dinheiro público.
E essa onda nefasta contra o filme vem do fato de que Ainda Estou Aqui sacode a amnésia oficial brasileira, que atropela a história para esconder o que de fato aconteceu durante os muitos anos dos tempos de chumbo vividos durante a Ditadura, onde milhares de pessoas foram presas, torturadas, perseguidas, destituídas de seus empregos, tiveram que sumir do mapa ou foram assassinadas. O filme retrata com fidelidade um desses casos emblemáticos, nas figuras de Rubens Paiva e Eunice.
Assim como O Cinema Novo passou por percalços e foi perseguido em razão da temática comum dos seus filmes, a fome, a miséria, as condições de injustiça da maioria e os privilégios de algumas pequenas castas, os filmes que tratem das ocorrências nos tempos do regime militar têm fortes adversários, muitos deles influentes no campo político e até mesmo da gestão pública nacional, como ex-presidente Bolsonaro, capaz de cuspir no busto de Rubens Paiva postado na Câmara Federal, e aplaudir o torturador Carlos Brilhante Ustra como seu herói predileto.
Está certíssimo Walter Salles quando optou pela produção desse filme monumental, dentro de um projeto político que responde à erosão da memória em torno desse passado deplorável. E mais ainda, por ter tido a sensibildiade de escolher uma atriz talentosa, Fernanda Torres, que com o mesmo espírito de sua mãe, Ferrnanda Montenegro, foi capaz de dar vida plena a Eunice, trazendo à consciência popular uma triste história que poucos conheciam.
Penso que Ainda Estou Aqui deve ser a porta de entrada por onde passarão, a partir de agora, outras produções desse memorável porte, nessa mesma temática a que o Brasil pouco tem se dedicado. Essas indicações que o filme recebeu no Oscar não apenas reconhecem a grandeza de Fernanda e Walter Salles, mas resgatam o significado do papel político que cinema brasileiro exerceu no passado e pode voltar a exercer em todo o mundo com maior clareza e profundidade.