É muito difícil escapar das garras do Leão brasileiro — as girafas que o digam. Quando um zoológico do interior de Santa Catarina assinou contrato de permuta com outro dos Estados Unidos, acreditou que estava apenas trocando 32 aves nacionais por três girafas. O felino não quis saber e atacou na alfândega brasileira. A mordida foi de quase US$ 23 mil. As informações são do Valor Econômico.
O caso percorreu todas as instâncias do Judiciário. Foi concluído com uma decisão do ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal, em 2019. Manteve decisão do Superior Tribunal de Justiça, validando parte da cobrança da Receita Federal: US$ 7,79 mil em PIS e Cofins Importação. As girafas foram enquadradas no conceito de bens e, sendo assim, a permuta teve de ser tributada.
Essa história faz parte de um acervo de disputas tributárias que ultrapassa R$ 5,4 trilhões — o que equivale a 75% do PIB. E essa conta, segundo o Insper, autor do levantamento, está subestimada. Inclui só as disputas com origem nas cobranças da Receita Federal. As ações ajuizadas por iniciativa dos contribuintes não estão contabilizadas.
“O contencioso é a doença, não a causa”, diz Breno Vasconcelos, advogado tributarista, professor e pesquisador no Insper e na FGV. “A gente tem um sistema marcado por complexidade, insegurança e litigiosidade. São causas e efeitos que se retroalimentam. Excesso de complexidade gera litigiosidade, que, por sua vez, gera mais complexidade.”
Uma empresa precisa seguir o que consta em 4.078 normas — ou 45.791 artigos e 106.694 parágrafos — para estar em dia com as suas obrigações fiscais. Se tiver negócios em todo o país, esse número aumenta. Somadas as esferas federal, estadual e municipal, são quase 400 mil leis, decretos, medidas provisórias, portarias, instruções normativas e atos declaratórios.
É como se a cada dia útil 46 novas normas fossem editadas. Os dados constam em um estudo do Instituto Brasileiro de Planejamento e Tributação (IBPT) sobre os 30 anos da Constituição Federal. “Temos o péssimo hábito de criar novas burocracias e não extinguir as antigas”, diz Gilberto Luiz do Amaral, coordenador de estudos do IBPT.
Todo esse emaranhado de normas, processos e custos para apurar e pagar tributos cai no colo do brasileiro — a ponta da cadeia. O fone de ouvido que você compra, a cerveja que você bebe, o arroz com feijão do almoço, tudo o que você enxergar ao seu redor tem um pedaço da carga que as empresas precisam suportar.
Ainda assim, mesmo munidos de todo um aparato para lidar com as questões fiscais, os empresários não se sentem 100% seguros. “Sempre fica a dúvida se estamos fazendo o certo. As regras não são simples”, diz Leonardo Dias, sócio da BrScan, empresa de tecnologia com sede no Distrito Federal. Ele conta que em certas situações preferiu pagar mais ao governo a correr o risco de, no futuro, se incomodar.
A complexidade da legislação brasileira é tamanha que gera situações esdrúxulas. Algumas empresas estão tendo que convencer as autoridades tributárias do que deveria ser óbvio: que tipo de produtos fabricam. O Conselho Administrativo de Recursos Fiscais, ou Carf, última instância para o contribuinte contestar administrativamente as cobranças da Receita Federal, está analisando casos do tipo.
Existe uma lei federal que regulamenta o ISS, o imposto municipal sobre serviços. Mas cada um dos 5.570 municípios brasileiros tem autonomia para definir a alíquota e fixar obrigações acessórias. O mesmo ocorre com os Estados e a cobrança do ICMS. O Rio Grande do Sul, por exemplo, alterou 558 vezes o seu regulamento em quatro anos.
As três propostas de reforma tributária no Congresso reduzem apenas parte dessa complexidade. A proposta de emenda constitucional (PEC) 45, da Câmara dos Deputados, e a PEC 110, do Senado, preveem tributar bens e serviços por meio de um único imposto, chamado IBS. A PEC 45 eliminaria IPI, PIS, Cofins, ICMS e ISS. A segunda é mais ampla. mesmos tributos e complementa com IOF, salário-educação, Cide-combustíveis e Pasep.
Parecia que o debate iria deslanchar no ano passado. Em fevereiro, os então presidentes da Câmara e do Senado, Rodrigo Maia (DEM-RJ) e David Alcolumbre (DEM-AP), criaram uma comissão mista que teria 45 dias para consolidar a proposta de mudança constitucional.
O plano era ousado: previa a votação em até dois meses e o envio do texto diretamente para os plenários das duas casas. Uma audiência pública foi realizada em março, mas, em seguida, os trabalhos pararam por causa do começo da pandemia.
Em julho, o assunto voltou a ficar aquecido. O ministro da Economia, Paulo Guedes, entregou ao Congresso o que seria a primeira parte da proposta de reforma do Executivo. O projeto de lei 3.887 é bem menos ousado que as PECs. Substitui somente o PIS e a Cofins por um novo tributo: a Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS). Nesse mesmo mês, a comissão mista foi reativada. Mas, por divergências políticas, o trabalho não foi para a frente. O prazo para a conclusão era 10 de dezembro.
O relatório final não foi apresentado, e as atividades acabaram sendo prorrogadas para até 31 de março.
No começo deste ano, com a troca de comando do Congresso, as promessas em torno da reforma tributária foram renovadas. Os novos presidentes da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), e do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), listaram o tema entre as prioridades.
O assunto, por si só, é complexo. Uma reforma mais ampla, além disso, depende de Estados e municípios, o que torna esse processo ainda mais difícil. ICMS e ISS — que podem ser extintos com a aprovação das PECs — são as principais fontes de arrecadação deles. Ninguém quer dar um passo em falso. Ainda mais em um momento de forte crise econômica.
A União, por outro lado, precisa de uma solução para o PIS e a Cofins. As contribuições estão no topo do ranking de litígios. Correspondem a 36% de todas as ações judiciais movidas pelos contribuintes para questionar tributos federais. Questões relacionadas ao Imposto de Renda das empresas, por exemplo, somam só 5%.