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Negacionistas dos EUA criam, em São Francisco, a “liga anti-máscara”

As notícias sobre a pandemia da Gripe Espanhola- uma doença cruel que se abateu sobre o mundo entre os anos de 2018 a 2020-, estão repletas de ações de repulsa aos tratamentos médicos e medidas sanitárias, manifestadas mundo afora, em várias partes do planeta.

Muitos dos que estamos vivendo essa triste pandemia do Coronavírus, podem até imaginar que as restrições impostas pelas autoridades sanitárias para prevenção da doença, como o isolamento social e o uso de máscara, são novidades. E que, também, nunca houve qualquer reação negativa, qualquer atitude negacionista em relação às medidas de tratamento que evitem a morte. 

Puro engano. As notícias sobre a pandemia da Gripe Espanhola- uma doença cruel que se abateu sobre o mundo entre os anos de 2018 a 2020-, estão repletas de ações de repulsa aos tratamentos médicos e medidas sanitárias, manifestadas mundo afora, em várias partes do planeta.  

Na cidade norte-americana de São Francisco em,1919, no auge da pandemia de gripe que se espalhava pelo mundo, alguns moradores, cansados após meses de restrições, resolveram criar um movimento batizado de Liga Anti-Máscara. 

Desconfiados da eficácia do uso de máscaras para frear o avanço da doença, eles acusavam as autoridades de violar seus direitos constitucionais e pediam a volta à normalidade. Em um encontro realizado em 25 de janeiro daquele ano, chegaram a reunir mais de 2 mil pessoas. 

Realizado há mais de cem anos, o protesto lembra as manifestações recentes em alguns estados americanos - e muito intensamente em partes do Brasil e em outros países - contra as regras de distanciamento social, o fechamento do comércio e outras medidas impostas para conter a atual pandemia de covid-19, a doença causada pelo novo coronavírus. 

Assim como os manifestantes de agora, os integrantes da Liga Anti-Máscara eram contra a exigência por diferentes motivos. 

"Muitas pessoas (simplesmente) não gostavam de usar as máscaras", diz à BBC News Brasil a historiadora Nancy Bristow, autora do livro American Pandemic: The Lost Worlds of the 1918 Influenza Epidemic ("Pandemia Americana: Os Mundos Perdidos da Epidemia de Gripe de 1918", em tradução livre). 

"Mas também havia pessoas que argumentavam que a exigência era uma violação de sua liberdade, intrusão excessiva do governo, coisas que estamos ouvindo novamente hoje", salienta Bristow, que é professora de Universidade de Puget Sound, no Estado de Washington. E o mais grave, no caso do Brasil, com explícito apoio de autoridades governamentais. 

Mas apesar da semelhança no discurso, Bristow ressalta que há uma diferença fundamental entre o movimento de 1919 e os protestos atuais: "No passado, eles não tinham os dados e as evidências que temos hoje de que fazer isso (cumprir as medidas de emergência) vai salvar vidas. A diferença é que agora não se pode alegar ignorância". 

A chamada gripe espanhola, que causou mais de 50 milhões de mortes ao redor do mundo, atingiu os Estados Unidos em três ondas, a partir da primavera de 1918 (outono no Brasil), quando focos foram identificados na Costa Leste, em soldados que haviam lutado na Primeira Guerra Mundial. 

Não levou muito tempo para a doença se espalhar pelo país e chegar à Costa Oeste. Em São Francisco, então uma cidade de 500 mil habitantes, o primeiro caso foi confirmado em 24 de setembro de 1918, em um paciente que havia retornado de uma viagem a Chicago. 

Mas as autoridades municipais, assim como ocorreu em outras cidades, demoraram a reagir. Inicialmente, determinaram apenas que doentes fossem colocados em quarentena e recomendaram que as pessoas praticassem boa higiene e evitassem multidões. 

Somente em 18 de outubro, mais de três semanas depois do primeiro diagnóstico, foi decretado o fechamento de escolas e locais de lazer e proibida a aglomeração de pessoas. A essa altura, São Francisco já registrava mais de 3,7 mil doentes e 70 mortos. 

O médico William Hassler, principal autoridade de saúde no governo municipal, considerava o uso de máscaras em público a maneira mais eficaz para impedir o avanço da doença e, em 25 de outubro, determinou sua obrigatoriedade. Quem desobedecesse estava sujeito a multa ou até mesmo prisão. 

"São Francisco foi uma das primeiras grandes áreas metropolitanas a exigir que toda a população usasse máscaras", diz à BBC News Brasil o especialista em história da medicina Brian Dolan, professor da Universidade da Califórnia em São Francisco. 

Em meio aos esforços nos meses finais da Primeira Guerra Mundial, o uso de máscaras começou a ser considerado símbolo de patriotismo. A imprensa da época estimava que 80% da população de São Francisco estivesse cumprindo a ordem nas semanas iniciais. 

Mas centenas foram detidos por desobedecer. Muitos outros usavam de maneira errada. Há relatos até de pessoas usando máscaras com um buraco na boca, para fumar. 

As máscaras da época eram feitas de gaze. A Cruz Vermelha fabricava e distribuía em todo o país, mas não havia o suficiente. Com a escassez, as autoridades recomendavam que a população costurasse suas próprias máscaras, com qualquer material disponível. Muitas eram feitas de tecid  os porosos, o que prejudicava sua eficácia. 

Muitos também questionavam a eficácia das máscaras para conter a pandemia. 

Dolan lembra que, na época, a Associação Americana de Saúde Pública havia publicado um artigo em uma revista científica no qual dizia que as evidências sobre a eficácia das máscaras eram contraditórias. 

"O desafio era que as pessoas diziam que, mesmo com as máscaras, não se estava evitando a propagação da doença", observa o historiador. 

Foi nesse contexto que surgiu a Liga Anti-Máscara, formada por empresários, comerciantes e até alguns médicos e um integrante do governo, para pressionar pelo fim da obrigatoriedade que, segundo eles, ia "contra a vontade da maioria da população".

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