Exclusivo Uma ferida aberta e a luta pela igualdade: Piauí tem 147 ações de racismo em tramitação

O Tribunal de Justiça do Piauí avança com a Comissão de Heteroidentificação e capacita servidores e magistrados para analisar os processos de racismo/injúria racial.

No chão, com o filho de colo, a lágrima que escorre no rosto de Maria* carrega consigo séculos de subjugação, de exploração, de dor, de uma 'herança maldita' que se perpetua na sociedade brasileira e impede pretos e pretas de alcançarem a 'verdadeira liberdade'. 

Naquele dia, em março de 2018, os socos, puxões de cabelo, aos gritos de 'macaca' e 'galinha preta' eram o ápice de uma violência diária, sistemática, sofrida por milhões em todo o país e que constatam que os 'grilhões' não foram totalmente rompidos, eles permanecem 'ocultos' no preconceito latente, vil e criminoso que está - infelizmente - enraizado na nossa teia social...

O caso em questão ocorreu em Ilha Grande no Piauí e as provas colhidas durante o processo culminaram na condenação de duas mulheres (mãe e filha) por injúria racial em fevereiro deste ano pela juíza Maria do Perpétuo Socorro Ivani de Vasconcelos, da 1ª Vara Criminal da Comarca de Parnaíba. As rés foram setenciadas a 1 ano e dois meses de reclusão pelo crime de injúria racial - desde janeiro de 2023 tipificado como uma modalidade do crime de racismo - após a sanção da lei 14.542.

O racismo é uma dor persistente no país e os casos se multiplicam (Foto: Marcello Casal Jr/Agência Brasil)

Atualmente no Piauí existem 147 processos de racismo/injúria racial tramitando no Tribunal de Justiça, destes 56 foram iniciados em 2024, ou seja, 38,09% do total. 

Quanto às ações julgadas, já foram 50, sendo 27 neste ano (o que representa 54% do cômputo geral. Os dados evidenciam a crescente preocupação do Judiciário piauiense em dar celeridade à análise de casos tão estarrecedores e dolorosos. 

Nesse sentido, o TJ do Piauí promoveu semanas temáticas de julgamento dos processos de racismo/injúria racial e vem alavancando a conscientização de magistrados, servidores, técnicos e todo o corpo profissional para a urgência de uma resposta, e principalmente para a quebra de estereótipos. 

A educação é o único caminho....

Os cursos temáticos da Escola Judiciária do Piauí (EJUD) são um exemplo desse esforço concentrado para promover o conhecimento e um 'novo olhar' sobre as feridas abertas pelo preconceito de raça em solo nacional. 

O professor doutor e vice-presidente da Comissão Institucional de Heteroidentificação da Universidade Regional do Cariri (URCA), Túlio Henrique Pereira, ministrou o curso 'Raça e Etnia' em março deste ano para servidores do TJ Piauí. Em diálogo com o MeioNews, o instrutor reverberou a importância do estudo para encurtar o trajeto no saber antirracista na magistratura. Para ele, a educação é o caminho. 

"Do ponto de vista técnico, a educação continua sendo o principal instrumento para dirimir as estereotipias negativas construídas em torno das populações racializadas. Todavia, a educação é o caminho mais longo. Mas quando nós operamos com esse tipo de saber antirracista na magistratura, alcançando profissionais da área jurídica, incluindo advogados, desembargadores, técnicos administrativos, assistentes sociais e psicólogos, nós conseguimos avançar e encurtar esse processo, pois entendemos que a dinâmica da vida prática perpassa por esses profissionais, e eles são capazes de operar mudanças urgentes".  

Professor doutor Túlio Henrique ministrou o curso 'Raça e Etnia' na EJUD

O reconhecimento de tal necessidade foi alavancado à época pelo diretor-geral da EJUD, desembargador José Ribamar Oliveira, que pontuou a resolução do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) relacionada a capacitação de magistrados e magistradas no tocante a gênero e raça. 

"A EJUD cumpre seu papel de atuar na promoção de conscientização e capacitação dos agentes do Poder Judiciário para eliminar esses esteriótipos e contribuir para uma sociedade mais igualitária", cravou. 

Heteroidentificação e equidade racial 

A juíza de Direito Mariana Marinho Machado, titular da Vara de Itainópolis e representante do Piauí na Comissão pela Equidade Racial da AMB, também preside a Comissão de  Heteroidentificação do Tribunal de Justiça do Piauí. 

O grupo representa mais um avanço do Judiciário local em busca da ampliação da representatividade da população preta na magistratura, de modo que a Comissão é responsável pelo procedimento de heteroidentificação complementar à autodeclaração dos candidatos negros e negras, a ser previsto nos editais de abertura de concursos públicos para provimento de cargos no âmbito do Poder Judiciário, inclusive de ingresso na magistratura, e para a outorga das delegações de notas e de registro, para fins de preenchimento das vagas reservadas, previstas nas Resoluções CNJ. 

Juíza Mariana Machado, presidente da Comissão de Heteroidentificação (Foto: TJ Piauí)Ao MeioNews, a juíza detalha as conquistas que têm sido concretizadas no TJ Piauí, apontando para um passo seguinte, em vias de ser consolidado em 2025, com a Comissão de Equidade Racial. 

"No âmbito do nosso Tribunal de Justiça do Estado do Piauí, a gente já vê significativos avanços no tocante a políticas de inclusão. Hoje em dia, eu sou presidente da Comissão de HeteroIdentificação do nosso Tribunal e estamos em vias de ter nossa Comissão, a Comissão pela Equidade Racial, conforme predetermina o Conselho Nacional de Justiça e, com fé em Deus, vamos conseguir implementar no ano de 2025 mais essa boa prática do nosso Tribunal em busca de uma maior equidade não só para magistradas e magistradas, mas também para toda a sociedade, para toda a população e servidores piauienses do nosso Tribunal de Justiça", afirmou. 

Se avançou, mas a luta é por mais... 

A expectativa da criação da Comissão de Equidade Racial no Judiciário piauiense emerge a partir do reconhecimento de que apesar dos avanços, ainda é preciso avançar mais. 

Com esse entendimento, o desembargador Brandão de Carvalho, autor do artigo 'Racismo: Termo Recorrente', em entrevista ao MeioNews aponta o aspecto histórico da problemática. 

"Nós sabemos, não adianta negar, que os Poderes no Brasil até épocas recentes, faziam acepção de pessoas no tocante a cor, isso aconteceu até mesmo na própria Igreja Católica Romana, no tocante as escolhas dos Cardeais. No Judiciário isso foi uma constante a nível nacional e local o racismo foi predominante também no Piauí, onde os negros e homossexuais e até mesmo as mulheres eram alijados nas escolhas até por concurso público", sinalizou. 

Brandão de Carvalho complementa. "Ainda é pouca a participação dos negros, o racismo ainda impera em nossa sociedade, veja o que aconteceu na USP na semana passada, uma vergonha inominável a sociedade brasileira ainda racista e misógina".

Desembargador Brandão de Carvalho é autor do artigo Racismo: Termo Recorrente (Foto: TJ Piauí)

A juíza Mariana Marinho Machado descreve em números o quão significativa é a luta travada pela Justiça piauiense para equilibrar a balança, o que tornam ainda mais importantes as conquistas alcançadas nos últimos anos. 

"Quanto à equidade racial da magistratura, ainda temos muito o que avançar. Atualmente, nós temos 1.7% de pessoas que se declaram pretas, entre magistrados e magistradas no Brasil, e 12.8% que se declaram pardas. Tendo em vista que a população preta e parda, 56% da população brasileira, percebe-se que ainda precisamos avançar em muito para que a gente possa realmente ter uma equidade e uma semelhança com a formação da nossa sociedade em si", complementou.

Novo protocolo de julgamento na Justiça com a perspectiva racial

Na última terça-feira, 19 de novembro, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), através do ministro Luís Roberto Barroso, lançou o novo protocolo para julgamento com a perspectiva racial. A novidade traz reflexos diretos no Piauí, o que foi celebrado pela juíza Mariana Marinho. 

Atualmente no Brasil menos de 2% dos magistrados são pretos (Foto: TJ Bahia)Assim, o trabalho que já vinha sendo desenvolvido com capacitação dos magistrados, servidores e técnicos do TJ Piauí ganhará ainda mais força para que a 'forma de enxergar' e de 'fazer julgamentos' seja embasada na perspectiva racial

O protocolo é mais um marco do arcabouço legal antirracista, que teve como pontapé inicial a Lei Afonso Arinos e se desenvolveu ao longo das décadas no Brasil. 

"Quanto a arcabouço legal, a gente sabe que existe ainda muito o que se avançar, vez que até mesmo a perspectiva de injúria racial, as diferenças pro racismo ainda não são absorvidas em nossa sociedade. Todavia, anteontem a gente teve uma grata surpresa que o Conselho Nacional de Justiça lançou o novo protocolo de julgamento com perspectiva racial. Isso demonstra, assim, um avanço enorme, vez que vai ajudar a aprimorar que nós, magistrados e magistrados do país, possamos verificar as formas de enxergar, fazer julgamentos, fazer decisões e sentenças com uma perspectiva racial, inclusive com propostas sobre a possibilidade de erros, de testemunhas, como a pessoa negra é vista quando é vítima de um crime e também quando é autor de um crime, vai ser bem interessante", comemorou. 

Por sua vez, o desembargador Brandão de Carvalho reafirma que além das leis antirracistas já existentes no Brasil, é preciso que se garanta o cumprimento e respeito à elas, o que sem dúvida alguma, é um grande desafio. 

"Quanto ao acarbouço legal antirracista deve ser aprimorado e levado a fundo a consciência nacional, porque não adianta editar leis que não sejam cumpridas e respeitadas pelos cidadãos. Não sei entender esse racismo brasileiro já que somos uma sociedade composta na maioria de negros, pardos e índios , nunca fomos uma sociedade branca para que pudéssemos ser criticos da maioria devido a nossa miscigenação que compõe a raça brasileira".

O fato é que o caminho até a equidade ainda é longo e desafiador, mas as ações adotadas para encurtá-lo trazem a esperança de que algum dia teremos finalmente um país igualitário e justo. 

Eliminar o racismo é alcançar a verdadeira liberdade, um sonho compartilhado por toda população preta na memória de Esperança Garcia, Zumbi, Dandara dos Palmares, Luiza Mahin, tantos ícones que foram essenciais para a construção da identidade nacional, para a história do Brasil.

(*O nome da vítima de injúria racial contida no texto foi omitida para preservar a sua imagem, na reportagem a chamamos apenas de Maria)

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