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Quando a dor é ignorada: a urgência de enxergar e superar a invisibilidade

Entre avanços tecnológicos e negligência estrutural, a batalha silenciosa de pacientes e especialistas para tirar a cirurgia de hérnia da parede abdominal do limbo da saúde no Brasil.

Imagem principal sobre energias renováveis no Brasil
Hérnias da parede abdominal acometem até 25% da população brasileira. | Foto: Reprodução

Ao cair da noite, a advogada Châmissi Sadi Rangel não alinhava seus planos para o dia seguinte, tampouco olhava as estrelas com a ponta de esperança de um futuro melhor, ela apenas pensava no fim, com uma dor 'invisível' aos olhos de muitos, mas que estava ali presente e a incapacitava de realizar atividades básicas, ou até mesmo de sonhar... 

A história de Châmissi não é única, os números da Sociedade Brasileira de Hérnia e Parede Abdominal evidenciam que o problema atinge em algum momento da vida entre 20% a 25% da população adulta nacional, o que representa quase 30 milhões de pessoas.

Châmissi descobriu a primeira ocorrência de hérnia há 12 anos, era do tipo 'inguinal' - a mais comum - presente em cerca de 75% dos pacientes. "Sentia dores muito fortes no local, seja em pé ou deitada". A advogada recebeu o diagnóstico após realizar uma ultrassonografia. 

Constatou-se uma hérnia de tamanho pequeno com possível início de encarceramento. 

O que parecia simples de ser resolvido, no entanto, foi marcado por um processo repleto de complicações pós-cirurgia, feita de forma aberta e com colocação de tela de polipropileno. 

Tive anasarca (inchaço de 23 kg após 72 horas). 

Esse era apenas o início do 'calvário' de Châmissi - que sofreu com recidivas. 

O ERRO DE RELEGAR A UMA CIRURGIA SIMPLES

Renomado cirurgião geral e do aparelho digestivo, o presidente da Sociedade Brasileira de Hérnia e Parede Abdominal, Gustavo Soares, desmistifica o processo histórico de relegar a cirurgia de hérnia para um plano 'mais simples', 'sem tanta tecnologia', 'sem inovação'. 

O caso de Châmissi e outros pacientes constatam que a falta de recursos para garantir os melhores resultados não é bom para quem sofre com a hérnia, assim como para todo o sistema de saúde. 

Dados da SBH mostram que no ano passado foram realizadas 349.968 cirurgias de hérnia da parede abdominal por meio do Sistema Único de Saúde ante 335.730 no ano anterior. No biênio, das 685.698 somente 4.358 foram de forma minimamente invasiva (ou seja, com pequenas incisões e recuperação mais rápida para o paciente), o que representa 0,62% do total. 

📊 Panorama Nacional das Cirurgias de Hérnia Abdominal no SUS

Fonte: DataSUS – acesso em 18 e 19 de fevereiro de 2025

O retrato das cirurgias no Brasil escancara o quão ainda é preciso avançar na oferta de procedimentos com mais tecnologia, especialmente no Sistema Único de Saúde. 

"Isso traz impactos imediatos na saúde do brasileiro, porque a hérnia é muito prevalente, suas complicações são muito graves, e, se ela não for tratada da forma como realmente é — ou seja, uma cirurgia muito importante, que merece todos os recursos para atingir os melhores resultados —, isso não será bom para o paciente", explicita o presidente da SBH, Gustavo Soares. 

✳️ São consideradas minimamente invasivas as que possuem o termo “videolaparoscópica”.


A TECNOLOGIA QUE EXISTE E MUDA VIDAS 

A tecnologia é uma aliada dos pacientes que sofrem com hérnias abdominais, cirurgias minimamente invasivas têm dado qualidade de vida, tornando a recuperação menos traumática e minimizando os riscos de complicações. 

Na técnica de videolaparoscopia, o cirurgião realiza pequenas incisões de até 1 centímetro, em que insere no abdômen uma cânula por onde são introduzidas a câmera e as pinças, a partir daí é gerada uma imagem em 2D com transmissão no monitor, assim, com o manuseio das pinças o procedimento para retirada da hérnia é feito com o menor trauma tecidual possível. 

Paciente passa por laparoscopia para tratar hérnia abdominal (Foto: SBH)

Já a cirurgia robótica é uma 'evolução' da videolaparoscopia, também sendo utilizada anestesia geral no paciente, e o procedimento é feito todo através de um robô, sendo gerada uma imagem 3D. O cirurgião comanda o robô, dando precisão aos movimentos, garantindo total segurança no processo.

Os procedimentos minimamente invasivos causam menos dor pós-cirurgia, reduzem o tempo de internação, e trazem um resultado estético com cicatrizes menores e mais discretas. 

Assim, apesar da cirurgia tradicional, a hernioplastia - com incisão aberta na região da hérnia - também ser altamente eficiente; a experiência ao paciente é bem menos traumática nos métodos minimamente invasivos. 

REVISITANDO A ANATOMIA DA PAREDE ABDOMINAL...

Encampando o movimento para uma ampliação da tecnologia nas cirurgias de hérnia, principalmente na rede pública de saúde, o Dr Gustavo Soares detalha ao MeioNews o impacto das inovações na área nos últimos anos. Com a cirurgia sendo o 'único tratamento' para resolução das hérnias da parede abdominal, apostar em técnicas de ponta ajuda na qualidade de vida do paciente. 

É até difícil dizer, mas, por incrível que pareça, talvez o que mais tenha impactado no tratamento tenha sido a revisitação da anatomia e o entendimento aprofundado da anatomia da parede abdominal. Isso talvez seja um dos pilares inclusive para o reposicionamento e para as técnicas que temos usado nos últimos anos.

O presidente da SBH crava: "Essa revisitação da anatomia e a compreensão da funcionalidade da parede abdominal, para mim, foram o mais revolucionário"

Além da cirurgia minimamente invasiva, as tecnologias de ampliação da cavidade abdominal como o botox e o pneumoperitônio em sinergia — talvez sejam, de acordo com o cirurgião Gustavo Soares, o que mais mudou o panorama do tratamento das hérnias nos últimos anos.

UM INVESTIMENTO QUE GARANTE QUALIDADE DE VIDA

Gustavo Soares em capacitação nos Estados Unidos; o médico defende mais investimentos para adoção de técnicas menos invasivas também no SUS (Foto: Reprodução) 

Quando se fala em cirurgia minimamente invasiva, automaticamente se direciona a atenção à qualidade de vida do paciente, que somado ao problema em si - que já traz muitas dores e pode incapacitá-lo de realizar atividades básicas, ainda demanda toda uma preocupação quanto ao pós-operatório, a recuperação. 

E é exatamente nesse 'item' que reside a maior diferença no comparativo com a técnica tradicional aberta

A cirurgia minimamente invasiva — que inclui a robótica e a videolaparoscópica — muda o pós-operatório imediato do paciente, principalmente nos primeiros 15 dias. É um período muito distinto em relação à cirurgia com técnica tradicional aberta.


Os ganhos na qualidade e no conforto do paciente são notáveis. 

A gente pode ampliar isso talvez para as primeiras três semanas, mas, marcadamente, os primeiros 15 dias são muito diferentes, com ganhos na qualidade e no conforto do paciente. (...) A diferença realmente é muito significativa.

O presidente da Sociedade Brasileira de Hérnia e Parede Abdominal admite que a ampliação das cirurgias minimamente invasivas exigem um 'custo financeiro', pois as técnicas são mais caras, assim como o valor demandado para o treinamento e capacitação do cirurgião. 

É um uso intensivo de tecnologia, mas acredito que a tendência é democratizar esse tipo de tecnologia para o bem dos pacientes. (...)Resumindo: os primeiros 15 dias são muito diferentes. Lá na frente, o resultado se iguala, mas o impacto social desses 15 dias — tanto individualmente quanto no custo global — vai se mostrar extremamente eficiente.

Dr Gustavo Soares complementa:

Vale a pena investir nisso.

O QUE O FUTURO NOS RESERVA... 

Como um problema comum - que pode atingir a proporção de um a cada quatro brasileiros adultos - amplificar a atenção às cirurgias de hérnia da parede abdominal precisa ser um objeto de interesse de toda a sociedade. 

Nesse sentido, nos próximos cinco a dez anos, a incorporação cada vez maior da tecnologia está no radar. Inclusive, com o uso da inteligência artificial para um avanço ainda mais significativo das técnicas abarcadas. 

As cirurgias com robôs e auxílio da inteligência artificial estão no radar de avanços (Foto: Imagem meramente ilustrativa/Shutterstock) 

"A tecnologia vinda do mundo digital — que inclui os hardwares, como a cirurgia robótica, e os softwares, como a inteligência artificial — vai impactar toda a medicina. Mas, na parede abdominal, vamos ver isso de maneira bastante palpável", aponta o cirurgião Gustavo Soares

À frente da Sociedade Brasileira de Hérnia e Parede Abdominal, o especialista prevê um 'boom' nas cirurgias minimamente invasivas. 

O que vamos ver? A execução de cirurgias que, hoje, menos de 5% são feitas por via minimamente invasiva. Isso vai explodir. Teremos muitas cirurgias realizadas por essa via.

De acordo com ele, haverá também a criação de protocolos e a facilitação da decisão técnica do cirurgião baseada na avaliação e interpretação de exames de imagem com inteligência artificial. 

"Isso tudo vai revolucionar. Acredito que será bastante visível nos próximos cinco anos e uma realidade para todos os pacientes nos próximos dez", finaliza.

A DOR QUE VIROU LUTA

As dores e traumas dos anos a fio de sofrimento com a hérnia abdominal moldaram a vida de Chamissi, a advogada agora luta para que mais profissionais sejam capacitados e mais pacientes tenham acesso a cirurgias minimamente invasivas. 

Posso deixar a mensagem de coragem para lutar pela busca de formarmos profissionais capacitados em técnica cirúrgica e que juntos possamos tentar lutar para que exista subespecialidade em cirurgia de hérnias do abdômen, através de carga horária em Faculdades de Medicina e Hospitais-Escola, junto aos órgãos competentes para tal.

Ela usa sua história para incentivar que mais pacientes lutem por uma dignidade no tratamento, para que o acesso seja democratizado

Que meus pares não se esqueçam que hérnias já são uma questão de saúde pública. Que lutem e tenham certeza de que, se dermos as mãos, teremos como vencer e sair ilesos... Que não desistam, que busquem esclarecimentos, que lutem para que os médicos aprimorem seus conhecimentos e se dediquem à profissão que abraçaram — sem fins lucrativos e de forma mais humanitária.

O DESAFIO DAS RECIDIVAS 

Os pacientes que já se operaram de hérnias abdominais devem ficar atentos quanto ao risco de recidivas, ou seja, o ressurgimento do problema em algum momento da vida, Châmissi Sadi teve duas

Tive duas recidivas e precisei operar em 2015 e 2018. Saliento que a última também recidivou.

A advogada sofreu com graves complicações, como embolia pulmonar e insuficiência cardíaca até novembro de 2020. 

"Após retirar a tela com técnica cirúrgica altamente qualificada, todos os sintomas se esvaíram e hoje estou normal", comemora.

As cicatrizes não foram apenas físicas, mas na alma, e diante de tudo o que enfrentou, Châmissi congrega a defesa do médico Gustavo Soares, por mais profissionais que dominem técnicas modernas. 

Além da tela, faltam profissionais que dominem a técnica cirúrgica. Todas as cirurgias foram abertas, inclusive a de 2020.

Ela recorda que sofreu com limitações de toda ordem. 

Minha vida conjugal ficou estagnada, dores fortíssimas, dificuldade para caminhar. Tive sintomas de doenças autoimunes como vasculite, síndrome de Sjögren, retirada da glândula submandibular direita, dores articulares em todo o corpo. Vejo que isso está acontecendo com muitos pacientes. 

"COMPREI PLANO FUNERÁRIO"

Nossa personagem desabafa sobre o período, marcado por incertezas e pela descrença. Châmissi chegou a contratar um plano funerário, ao considerar que não iria sobreviver. 

Tive de limitar meu atendimento na advocacia em percentual de oitenta por cento, em razão das patologias advindas de tão graves complicações. Eu era quase um vegetal. Comprei plano funerário. Pensei que não conseguiria sair dessa situação. 

Todas as dificuldades ficaram fincadas na sua trajetória e atualmente, a advogada está há quase cinco anos sem novas intercorrências. 

Sou caso clínico em observação há quase cinco anos, que vencerá em 25 de novembro de 2025. Até o presente momento, provado através de ultrassonografia da parede abdominal, não houve recidiva. Tenho vida normal. 

Hoje, Châmissi se permite a 'sonhar' novamente e levar sua vida sem percalços, com novos horizontes..

Paciente passa por procedimento para retirada de cerume durante recuperação de cirurgia de hérnia abdominal (Foto: Reprodução/Facebook)

MAS AFINAL, QUAIS OS FATORES DE RISCO E QUANDO PROCURAR ATENDIMENTO?

O cirurgião da parede abdominal, Gustavo Soares, escancara que a causa mais importante da hérnia é uma predisposição genética, hereditária.

De acordo com o especialista, hábitos e condições de saúde não são a principal causa, mas muitas vezes são o contexto em que o paciente descobre que tem a hérnia.

Manter hábitos saudáveis é importante para todos e impacta inclusive no paciente com hérnia. Mas, de modo geral, não há um conjunto de hábitos que evite o surgimento da hérnia

A dor é um dos sinais da hérnia da parede abdominal (Foto: Banco de Imagens)
O líder da Sociedade Brasileira de Hérnia e Parede Abdominal reverbera que o mais importante é ter consciência dos sinais e sintomas, e procurar assistência médica quando necessário.

Entendendo que a hérnia é uma doença anatômica, um defeito na parede abdominal, os dois sintomas principais que se destacam, são: dor e abaulamento.

A dor ocorre por pressão ou estrangulamento do conteúdo que passa por esse defeito. Ela aparece geralmente próximo ao umbigo, na linha média do abdômen, na virilha ou próximas a incisões cirúrgicas.


Gustavo Soares explica que o outro sinal é o abaulamento — ou seja, um caroço, uma bolinha — percebido sob a pele, na mesma região.

"Com esses dois sinais — dor local e abaulamento —, o paciente deve procurar avaliação médica. A maioria das hérnias terá indicação de tratamento, que é sempre cirúrgico", explicita

O médico aponta ao MeioNews que não existe tratamento conservador para hérnias, explicando que 'pode-se até observar durante um tempo, mas, quando houver indicação, o tratamento será cirúrgico'.

GRUPOS DE APOIO: RELATOS DE DOR E SUPERAÇÃO

Assim como Châmissi, milhões de brasileiros enfrentam a dor e o medo após o diagnóstico de hérnias da parede abdominal, grupos de apoio nas redes sociais têm se multiplicado - nos espaços, os pacientes dividem as angústias e as experiências, propagando uma melhor orientação e mais acolhimento. 

Compartilhar a dor também é um estágio para superá-la e vencê-la. 

Pacientes se unem em busca de acolhimento para enfrentar hérnias abdominais (Foto: Reprodução/Facebook)

"Eu fiz faz 7 dias bilateral por vídeo, com tela, está andando de boa, sem pegar peso, espero 2 meses para voltar pra academia, mas minha recuperação está tranquila. (Cirurgia) por vídeo é vida", detalha Diego R*. 

A rede de contatos torna-se ainda mais essencial ao se perceber as recidivas, há pacientes que procuram os grupos até mesmo para buscar um encorajamento diante do retorno da hérnia. 

Haroldo* apresentou hérnia pela primeira vez há 23 anos e desde 2021 percebeu uma recidiva.

"No ano de 2002 fui operado de uma hérnia inguinal, correu tudo bem graças a Deus, já há 4 (anos) verifico uma outra no lado esquerda, com o tempo aumentou, tenho 61 anos, preciso me operar, preciso que me deem coragem para efetuar a nova cirurgia", comenta.

As experiências relatadas evidenciam que apesar das hérnias abdominais serem comuns, ainda há muito o que se avançar na propagação da informação e na desmistificação, para que, inclusive, os pacientes saiam do anonimato e passem a mostrar a urgência de se dar prioridade à causa. As hérnias abdominais não podem ficar em segundo plano, há milhões em sofrimento que necessitam de uma solução urgente, para que a dor cesse e a vida 'volte a sorrir'.... 


|*Nome preservado a pedido da fonte