“Inventar-te-ia antes que os outros te transformem num mal-entendido”. Parece um tanto irônico essa frase ter sido dita por Glauber Rocha, um dos maiores nomes do Cinema Novo, movimento cinematográfico brasileiro das décadas de 50 e 60 bebido na fonte do Neo-realismo italiano e da Nouvelle Vague francesa. Tido como gênio pela grande maioria dos críticos, alguns filmes de Glauber continuam desafiadores e instigantes narrativamente até hoje, como é o caso de Deus e o Diabo na Terra do Sol, de 1964, que será exibido gratuitamente no Clube de Vídeo da Casa da Cultura nesta quarta-feira, dia 2, a partir das 18h30. Verdadeiro marco do Cinema Novo, a história acompanha Manoel e sua esposa atravessando a seca nordestina com o intuito de vender o rebanho de gabo na cidade. Não bastasse o fato de alguns animais morrerem no percurso, o coronel toma os que ficaram vivos, alegando ser dele. Transtornado, Manoel mata o coronel e foge com a esposa, juntando-se a um grupo religioso liderado por Sebastião, tido como santo por lutar contra os grandes latifundiários e buscar o paraíso após a morte. Em resposta aos ataques de Sebastião, os latifundiários contratam os serviços de Antônio das Mortes para exterminar o grupo. Com apenas 25 anos quando lançou Deus e o Diabo, que, ao lado de Terra em Transe (1967) e O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro (1969), é uma de suas obras mais expressivas e consideradas paradigmáticas dentro da estética ideológica do Cinema Novo (crítica social aliada a uma maneira de filmar radicalmente oposta ao estilo norte-americanizado), é comum se atribuir a Glauber Rocha a autoria da frase “uma câmera na mão e uma ideia na cabeça”. Na verdade, o grito do movimento foi dado por Paulo César Saraceni, um dos mentores do Cinema Novo e um dos primeiros cineastas do país a obter reconhecimento internacional. Ele disse a síntese do que seria o movimento a Glauber durante uma conversa informal, que adorou a expressão e a popularizou. Seja como for, é inegável o talento de Glauber Rocha e sua importante contribuição para o cinema nacional. Deus e o Diabo na Terra do Sol é prova absoluta disso, com uma narrativa viva, virtuosa e, em certos momentos, inovadora. As atuações marcantes de Lidio Silvia como Sebastião e Maurício do Valle como Antônio das Mortes também contribuem para o filme ser uma experiência única e visceral, cheia de simbologias, especialmente no final, a corrida desesperada para o mar. Foi indicado à Palma de Ouro em Cannes e se configura como umas das grandes obras-primas do nosso cinema. Imperdível esta oportunidade vê-lo (ou revê-lo) no Clube de Vídeo.