Em “Sobre a Nudez”, poema de fins dos anos 60, o português Jorge de Sena pergunta: “Por que há então quem tema tanto a nudez dos outros? Será que teme, menos que o feio de muitos, a beleza de alguns, ou o fascínio das esplêndidas partes de uns raros?”. A beleza de Letícia Spiller, de fato, é dessas que fazem todos, homens e mulheres, tremerem nas bases. Pode bem despertar admiração, inveja, cobiça e, quem sabe, como diz o poeta, um tanto de medo nos incautos. O corpo perfeito foi esculpido em anos de atividade física praticada com disciplina. A aparência descansada é o resultado de uma busca constante por serenidade e de uns poucos procedimentos estéticos, que ela assume sem pudor. É dessa mesma forma que a atriz encara a nudez. Além da capa desta edição, Letícia mostra o corpo em “Dorotéia”, de Nelson Rodrigues, que teve a temporada no Teatro Tom Jobim prorrogada até 1º de maio. Nas páginas do ELA e no palco, o importante é que tudo aconteça naturalmente.
— Acho que a minha decisão de posar nua tem muito a ver com a Dorotéia. Na peça, a cena de nudez faz parte de um contexto triste e doloroso, é algo que acontece naturalmente, eu me sinto à vontade. O ensaio reflete esse momento. Tenho 42 anos, iniciei há pouco tempo mais um ciclo de sete anos na minha vida. É a hora de me livrar de certas coisas — explica a atriz, que, sim, acredita que há mais coisas entre o céu e a terra... vocês sabem.
EXERCÍCIOS DE DESAPEGO
É no mínimo interessante imaginar do que essa mulher estonteante e bem-sucedida quer se livrar, mesmo sabendo que todos nós lidamos com os nossos próprios demônios. De novo, Letícia recorre à Dorotéia:
— Ela é linda, mas se desapega da vida que leva e da própria beleza em busca de redenção pela morte do filho. De qualquer maneira, a ideia de beleza é engraçada, não acha? Muitas vezes eu não me senti bonita — diz Letícia, buscando a modéstia de quem envelhece aos olhos do público desde os anos 80, quando era a paquita mais famosa do “Xou da Xuxa”. — Mas eu também tento praticar esse desapego porque o tempo está passando e não é fácil se despedir da juventude, encarar a realidade, entender que existe beleza na velhice. Aproveito enquanto ela está aqui, mas sei que não é só uma questão estética. O prazer nos deixa mais bonitos. Fazer o que se gosta, tomar um banho de cachoeira, ficar energizada.
E é justamente nesse exercício do desapego que ela busca alternativas à rotina de malhação pesada com dieta rigorosa, a combinação favorita de tanta gente em busca de um corpo bonito.
— Tenho feito pilates com fisioterapeutas em um estúdio na Barra. Para mim, é mais eficaz do que a musculação. Também pratico os ritos tibetanos, que são cinco posturas da hatha ioga que se repetem. Gosto de começar o dia com eles, acho que fazem o metabolismo girar — diz ela, que desde muito jovem tem a dança como atividade física predileta. — Hoje, eu danço quando dá tempo. Tenho um professor francês que eu adoro. Não tenho feito clássico, mas vou voltar. E quero muito aprender flamenco. tenho fascínio pela dança espanhola. Gosto dessa sensualidade terra, sabe? Do ritmo, da força dramática...
Mas há uma outra atividade física que ela pratica e que não pede disciplina ou compromisso. Letícia gosta de girar.
— Quando eu fiz a peça “O falcão e o imperador”, baseada na obra do poeta persa Rumi, estudei os movimentos que os sufis fazem. Daí em diante, não parei mais de girar. É ótimo, parece que a gente sai do corpo — conta ela, sem disfarçar o entusiasmo.
Letícia Spiller girando como um daqueles derviches turcos... Tudo acontece naturalmente.
'EU NÃO PENSO EM SEDUZIR'
O corpo, para Letícia Spiller, é uma arma de sedução, mas nunca deliberadamente.
— Eu não penso em seduzir. O corpo seduz se estiver bem trabalhado, tem a ver com consciência corporal. Busco o erótico que não está apenas no sexo, mas nas sutilezas — diz Letícia, para quem a maternidade (ela tem dois filhos: Pedro, de 18 anos, e Stella, de 5) a deixou mais sexy.
— O prazer aumentou, a minha sensualidade também. Parece que tudo pula dentro da gente, ficamos com aquela bochecha corada — brinca ela, que está no segundo casamento.
GULA POR BISCOITO DE CHOCOLATE COM REQUEIJÃO
E já que o corpo deve ser cuidado, ela dedica à dieta a mesma disciplina com que faz exercícios. Há algum tempo descobriu intolerância à proteína do leite e ao trigo e outros grãos. Mas não pirou como muita gente por aí.
— Eu acredito no hábito e na reeducação alimentar. Procuro comer a cada três horas. Mas tudo bem sair da rotina. Não tenho pânico de engordar, mas também não gostaria que isso acontecesse. Então vou tentando manter a forma — conta Letícia, que já fez o detox da chef Andrea Henrique, com quem aprendeu o valor do suco verde (“faz bem para o sangue, para a pele e aumenta a disposição”). — Também já fiz jejum para uma limpeza do corpo, mas não cometi nenhuma loucura. Louco mesmo é comer biscoito recheado de chocolate com requeijão. Eu fazia isso com as minhas amigas, tem gostinho de infância. Ainda hoje, muito raramente, como um. É uma delícia, sabia? — pergunta, em tom maroto.
E já que estamos no terreno das insanidades, Letícia não entende a procura excessiva por procedimentos estéticos. Tampouco a recusa de certas mulheres em admitir que frequentam clínicas de dermatologia e de cirurgia plástica.
— Sou favorável, mas desde que haja equilíbrio. Eu faço preenchimento no cantinho da sobrancelha. As bolsas sob os olhos são uma característica da minha família, então as tirei com cirurgia. Depois de amamentar, coloquei silicone nos seios, mas pedi ao médico para que eles ficassem naturais. Sinceramente, não entendo por que as pessoas não falam sobre isso. Fazer cirurgia não é um problema! — afirma ela, que já mudou a aparência por conta do trabalho.
'SOU MUITO YANG, GUERREIRA, EU VOU À LUTA'
Na peça “O falcão e o imperador”, Letícia raspou os cabelos. Para a Maria Regina, da novela “Suave veneno”, ela tingiu os fios de preto e os deixou curtíssimos. Foi comparada à Isabella Rosselini. Para a vilã Soraya, de “I love Paraisópolis”, adotou um corte médio e um tom de louro ainda mais claro. Enquanto se dedica ao teatro, ela não mexe no comprimento dos fios.
— Estou curtindo eles assim mais compridos. Acho que cabelo dá uma força enorme. E me sinto mais feminina. Sou muito yang, guerreira, eu vou à luta. Imagine se o cabelo fosse curto? Sempre que me pedem para mudar o visual para um trabalho, eu me pergunto ‘Será que vale a pena mesmo?’. Se achar que sim, eu não hesito.
E foi dessa forma, sem hesitar, que ela se transformou na drag queen Roshanna no filme “O casamento de Gorette”, de Paulo Vespúcio (2014).
— Eu parecia uma coisa de outro mundo com aquelas plataformas. Mas quis muito fazer esse filme. Gosto de sair do glamouroso, de desconstruir a minha imagem — diz Letícia, que também se despiu do glamour no filme “Tudo o que Deus criou”, de André da Costa Pinto (2012).
Letícia é de uma geração de atrizes que busca igualdade nas relações de trabalho e está ligada nos discursos de nomes poderosos de Hollywood, como Meryl Streep, que vira e mexe fala sobre disparidades salariais e os poucos papéis de qualidade para as mulheres.