Uma sensação estranha - e, vale confessar, incrivelmente boa - quando toca o celular e um beatle quer falar com você. E o mais inusitado: sem nenhum assessor para fazer a ponte entre a ligação, de Londres, e o Rio. Depois de alguns segundos de hesitação - será que é ele mesmo? -, a voz rouca do outro lado da linha confirma que, yeah, yeah, yeah, é Paul McCartney quem está falando.
- Desculpe, não me apresentei corretamente. E minha voz está realmente esquisita hoje - diz ele, em entrevista exclusiva ao GLOBO, pouco antes de viajar para o Brasil. - Mas, sim, sou eu mesmo. Parece que temos 20 minutos para falar de muitas coisas. Podemos começar?
A dúvida é: por onde começar? A ironia de Paul faz sentido, claro. Afinal, quando subir ao palco do Engenhão, na noite deste domingo, para o primeiro dos dois shows cariocas da "The up and coming tour" - que já havia mostrado, em novembro do ano passado, em Porto Alegre e São Paulo -, Paul vai levar com ele boa parte da história da música pop.
Serão cerca de duas horas e meia para resumir uma trajetória estelar de cerca de 50 anos, que passa pelos Beatles, segue pelo tempo com os Wings e culmina com sua carreira solo, ativa até hoje. Não deve ser fácil fazer o repertório de um show desses.
- Não é fácil, mas é divertido. Quando estive no Brasil pela primeira vez, em 1990, estava voltando a tocar o repertório dos Beatles depois de muito tempo, e aquele show tinha um jeito retrospectivo, inclusive os vídeos. Este também tem, claro, mas não de forma tão clara. Por isso, comecei pensando quais músicas o público iria querer ouvir. Tomei "Hey Jude" como referência e fui encaixando alguns clássicos. Depois, pensei em músicas que não costumam ser muito lembradas, como "Letting go" e "Ram on". Por fim, acrescentei algumas canções que eu mesmo queria tocar, como "Dance tonight" e "Mrs. Vandebilt".
Apesar do tempo passado, Paul diz que tem boas lembranças daqueles dois shows no Maracanã, em abril de 1990, um deles após um impressionante temporal, que não demoveu as 184 mil pessoas presentes ao estádio.
- Lembro que choveu muito, que tinha muita gente ali e que o show entrou para o Guinness por causa disso. Foi o auge daquele bom momento que eu vivia, retornando aos palcos e me reencontrando com o repertório dos Beatles. Lembro também que havia muita preocupação com o Maracanã. Temiam que o espetáculo estragasse o gramado e o futebol dos seus craques. Mas não deve ter atrapalhado muito. Tanto que o Brasil foi campeão do mundo quatro anos depois.
Durante sua primeira passagem pelo Brasil, Paul e sua mulher, a tecladista e fotógrafa Linda McCartney (morta em 1998), entregaram ao então presidente Fernando Collor um livro autografado, com os dizeres: "Salve a Floresta Amazônica".
Não foi um ato isolado, já que em abril deste ano, Paul foi visto - e fotografado, e filmado - no renomado festival Coachella, nos Estados Unidos, na cabine de som, curtindo o som do DJ holandês Afrojack.
- Ah, aquilo foi muito divertido. Eu toquei no Coachella há dois anos e adoro o clima daquele festival. Estava com uma turma jovem, minha noiva, o filho dela e alguns amigos. Encontramos também Usher (cantor americano de r&b) - lembra ele. - Fomos lá apenas curtir a festa e acabamos todos parando na cabine do Afrojack, depois de assistirmos aos ótimos shows dos Black Keys e dos Chemical Brothers. Quando reparei, minha imagem estava no telão, e todos na pista gritavam o meu nome. Tentei brincar de homem invisível, mas parece que não deu certo.
Embora pareça, Paul não é exatamente um estranho no universo das pistas. Com os Beatles e sob a influência do pioneiro da eletrônica John Cage, ele já havia feito experiências com colagens e sobreposição de fitas magnéticas em músicas como "Tomorrow never knows". Além disso, nos anos 1990, ele criou o projeto Fireman, de sons eletrônicos, ao lado de Youth, integrante do grupo inglês Killing Joke.
- Realmente, fizemos essas experiências com fitas em "Tomorrow never knows" e em outros momentos menos conhecidos, alguns nem lançados, tentando criar sons inusitados. Sempre gostei de explorar as possibilidades de um estúdio e sua aparelhagem. Por isso, tenho um apreço pela música eletrônica, algo que se refletiu no projeto Fireman. Claro que, como no rock, há coisas muito boas e outras nem tanto.
Excelente forma aos 68
Ídolo de várias gerações, dono de uma conta no Twitter, que confessa não atualizar sempre pessoalmente ("Mas de vez em quando sou eu mesmo por ali", garante), Paul sabe que boa parte dos seus novos fãs, que tiveram contato com sua obra recentemente e vão estar nos dois shows do Engenhão, baixaram suas músicas pela internet, nem sempre de forma legal.
- Sei disso e, sinceramente, não me importo tanto. São os novos tempos, e seria besteira se resolvesse brigar com eles - afirma. - Só me incomodo quando penso que alguns desses novos fãs baixaram minhas músicas ou dos Beatles com uma qualidade ruim. Isso realmente me deixa chateado. Também gostaria que, apesar do que a internet sugere, eles entendessem que a música não é de graça. Ou, pelo menos, nem sempre é de graça.
Em excelente forma para os seus 68 anos, Paul diz que o tombo que levou no encerramento de um dos shows em São Paulo, no ano passado - ele tropeçou numa caixa de retorno enquanto se despedia do público -, não foi nada e se diverte ao lembrar do ocorrido.
- Hoje tudo vai parar no YouTube, não é? Até um tombo ridículo como aquele - brinca. - O que aconteceu foi que, em vez de me despedir do público do meio do palco, como sempre faço, me animei e fui correndo para as duas extremidades. Só não contava com aquele maldito monitor escondido. Mas repare no vídeo: eu me levantei muito rápido e cheio de agilidade. Parecia o James Bond.
Paul foi uma das primeiras estrelas do rock a divulgar as causas ecológicas. Segundo ele, em tempos de aquecimento global, o tema nunca esteve tão em evidência.
- Não pedimos ao seu ex-presidente para preservar a floresta por algum tipo de romantismo. A preservação ambiental já era importante naquela época. Lembro que, na ocasião, andei de barco no litoral do Rio e, apesar de toda aquela beleza, vi muito lixo na água. Hoje, com o aquecimento global, vemos como essa preocupação já era crucial. Continuo engajado em atividades ecológicas e faço a minha parte, reciclando o lixo e economizando energia em casa. Divulgo também a campanha "Segundas sem carne", para chamar a atenção para o fato de que a criação de gado contribui para o aumento dos gases do efeito estufa.
Não é só a imagem de Linda como vegetariana convicta e defensora dos direitos dos animais que se mantém viva na memória do ex-Beatle. Ele ajudou na preparação do recém-lançado livro retrospectivo "Linda McCartney - Life in photographs" (Taschen), que reúne alguns dos melhores trabalhos dela.
- O livro ficou maravilhoso, todos na família se orgulham muito dele - conta Paul, que assina o prefácio, ao lado das filhas Stella e Mary. - É um trabalho que mostra todo o talento de Linda como fotógrafa, revelando também sua sensibilidade e seu senso de humor.