A reunião de dois gigantes da literatura brasileira, Chico Buarque e Milton Hatoum, na noite desta noite, na 7ª Festa Literária Internacional de Paraty, não foi exatamente um debate, como estava programado, mas um verdadeiro encontro, no sentido mais amplo da palavra. Nele, ambos reconheceram semelhanças extraordinárias em seus respectivos livros. Num caso único de simbiose na literatura contemporânea brasileira, dois livros, "Órfãos de Eldorado", de Milton Hatoum, e "Leite Derramado", de Chico Buarque, estavam sendo pensados ao mesmo tempo com um objetivo muito parecido: usar a memória centenária de um narrador para traçar um panorama histórico do País.
O livro de Hatoum foi publicado antes e Chico revelou que, ao ler a história de Estiliano, personagem criado pelo escritor amazonense, sua reação foi: "Diabos, esse cara copiou meu livro". Depois se deu conta que "Leite Derramado" não tinha sequer título e ainda estava sendo escrito. Hatoum teve reação semelhante quando saiu o livro de Buarque: "Mas essa é a história que eu contei para o Chico". Não se trata de plágio, evoque-se. Os dois realmente contaram histórias um para o outro em ocasiões anteriores, esqueceram-se delas, voltaram a lembrar e adaptaram episódios que lhe pareceram mais interessantes.
No caso de Hatoum, a recomendação da editora escocesa que lhe encomendara a novela tinha sido clara: queria que fosse baseada num mito amazônico. Uma novela condensada. Buarque não tinha qualquer compromisso com a editora brasileira de ambos, a Companhia das Letras. Passou um ano e meio pesquisando e lembrando histórias contadas pelo pai, o historiador Sérgio Buarque de Holanda - ele confessa que nunca foi um bom leitor de história. Como Hatoum, buscou a concisão e revelou que poderia ter escrito uma novela de 20 páginas, não fosse seu narrador um homem centenário cuja memória já está mais prejudicada de que a de Delphine Seyrig no filme "O Ano Passado em Marienbad", de Resnais.
Na velhice, como diz o velho narrador de Chico, "a gente dá para repetir casos antigos" e, na fosse tão falha a memória do carcomido aristocrata à beira do túmulo, ele não precisaria de 150 páginas para contar como mudou a história do Brasil neste último século para que tudo permanecesse exatamente igual, do preconceito racial à corrupção. Chico brincou com o amigo Hatoum, lembrando que esse narrador lhe azucrinou a vida durante um ano e meio, tirando seu sono e deixando ao escritor como herança uma perna quebrada. Assustado como a ficção tomava conta de sua vida real, o cantor e compositor deve ter encurtado a novela para se livrar do velho narrador azarento.
"Guimarães Rosa também engavetou um livro sobre um velho habitante de um casarão", lembrou Chico, citando "A Fazedora de Velas", que o autor de "Grande Sertão: Veredas" conservou durante anos no fundo de uma gaveta. "Rosa ficou com a mesma doença do seu velho e depois reconheceu o casarão que ele imaginou numa viagem a Minas". Chico, admite, encurtou o livro por precaução, ou por acreditar na observação de Octavio Paz evocada por Hatoum, de que o romancista é o biógrafo de espectros. "Fiquei um ano e meio ouvindo a voz do meu narrador e foi difícil me despir dele, porque, apesar de seus preconceitos, acabei tendo certa empatia por ele", revelou Chico, numa noite de surpreendente verborragia, ele que detesta entrevistas e odeia falar de seus livros.
Mais de 800 pessoas disputaram um lugar na Tenda dos Autores, em Paraty, para ouvir Chico Buarque e Milton Hatoum num debate mediado pelo professor de literatura Samuel Titan Jr., que falou das semelhanças entre os livros e das referências adotadas por cada um deles, Hatoum enumerou algumas: Mario de Andrade, Manuel Bandeira, Kaváfis e Mário Sá-Carneiro. Chico teria demorado mais: só pelo navio criado por ele em "Leite Derramado" desfilam figuras históricas como Santos Dumont, Josephine Baker e o arquiteto da modernidade, Lê Corbusier. Resta ao leitores montar esse mosaico.