TRAGÉDIA EM DUAS RODAS

Sonhos interrompidos: o retrato dos adolescentes mortos em acidentes de moto no Piauí

Entre estradas de terra e ausências que nunca cicatrizam, levantamento inédito do MeioNews revela o perfil de jovens de 14 a 17 anos que perderam a vida conduzindo motocicletas no interior do Estado.

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Acidentes de moto são uma 'chaga' no Piauí e ceifam a vida de adolescentes condutores. | Foto: Pixabay


Não são apenas números. Não são apenas dados. São trajetórias. Vidas, sonhos interrompidos em fração de segundos, na esquina de casa, a poucos metros do “abraço materno”, do retorno ao lar.

Os acidentes envolvendo motocicletas são uma “chaga” na sociedade e, quando envolvem adolescentes, impactam ainda mais, pois, seguindo nossa legislação de trânsito, eles sequer deveriam estar no comando de uma.

Dados inéditos catalogados pelo MeioNews até 25 de outubro de 2025 traçam um perfil dos adolescentes mortos em acidentes de moto no Piauí. O levantamento foi feito com base no Observatório de Trânsito da Secretaria Estadual de Segurança Pública (SSP-PI).

Até a data, foram oito condutores de motocicletas com menos de 18 anos que perderam a vida em acidentes. Todos os casos estão concentrados na faixa etária de 14 a 17 anos, especialmente em municípios interioranos, com fiscalização parca, em que historicamente não há frequência no transporte público e conduzir uma moto sem capacete, sem CNH e desde muito cedo torna-se “banal” — o que certamente não deveria ser.

#PARATODOSVEREM  A imagem tem fundo bege e apresenta uma ilustração no centro de um adolescente pilotando uma motocicleta. Ele veste capacete vermelho, camisa bege, calça jeans azul e botas pretas. A moto é vermelha e preta, vista de perfil, apontando para a esquerda.  Na parte superior, em letras grandes e pretas, está o título: “O PERFIL DAS VÍTIMAS”.O texto a seguir diz: “Homem, de 14 a 17 anos, e do interior do Piauí. Esse é o perfil predominante dos condutores menores de idade vítimas de acidentes de moto no Estado.” À direita da ilustração, em letras maiúsculas, lê-se: “Foram oito ocorrências registradas neste ano até o momento, distribuídas em oito municípios, sendo sete no interior e uma na capital, Teresina.” Abaixo, há uma lista com idades e cidades das vítimas, organizada em duas colunas. Na coluna da esquerda: Masculino – 17 anos; Masculino – 15 anos; Masculino – 15 anos; Masculino – 17 anos; Masculino – 16 anos; Masculino – 17 anos; Masculino – 14 anos; Masculino – 17 anos. Na coluna da direita, os respectivos municípios: Marcos Parente; São João do Piauí; Cocal; Teresina; Assunção do Piauí; Batalha; Pio IX; Baixa Grande do Ribeiro. Na parte inferior, em letras menores e itálicas, está escrito: “Dados: SSP-PI, catalogados pelo MeioNews.” FIM DA DESCRIÇÃO.

UMA TRAGÉDIA FAMILIAR 

Em Assunção do Piauí, a 260 km de Teresina, parecia mais um dia comum na pequena cidade de 7,5 mil habitantes, onde todos se conhecem e cada moradia se assemelha a uma extensão do próprio lar — como uma grande família. Mas, no domingo, 7 de julho, um acidente provocou uma dor imensurável entre os moradores: José Marlon Moreno, de apenas 16 anos, perdeu a vida.

#PARATODOSVEREM A imagem está dividida em duas partes. À esquerda, há uma motocicleta danificada em uma área de chão batido e pouca iluminação. O veículo sofreu um acidente, com peças soltas e o guidão desalinhado. À direita, vê-se José Marlon, um jovem de pele escura, cabelo curto e expressão serena, vestindo uma camiseta verde e uma corrente dourada no pescoço. Ele está em um ambiente interno, encostado em uma parede branca. FIM DA DESCRIÇÃO.

Ele conduzia uma motocicleta quando se envolveu em uma colisão com o próprio irmão, de 24 anos, que dirigia um carro. A tragédia familiar ceifou os sonhos de José Marlon, que era estudante e almejava uma vida melhor para si e para a família.

Infelizmente, o adolescente não terá essa chance, deixando uma marca irreparável de saudade e tristeza — sobre como poderia ser o futuro, sobre como seria o “amanhã” que não veio...

A 360 km de Assunção do Piauí, já chegando ao litoral do Estado, assim como José Marlon, Francisco Igor, de apenas 15 anos, começou a pilotar muito cedo. Na rotina interiorana, o uso da motocicleta é difundido ainda na tenra idade.

O adolescente voltava com um amigo de uma partida de futebol quando, na zona rural da cidade, perdeu o controle e colidiu contra um poste, no povoado Boíba. O serviço de atendimento médico chegou a ser acionado, mas o jovem já estava sem vida.

Mais uma história interrompida, mais uma família enlutada, mais uma mãe que chora...

Francisco Igor não resistiu ao acidente ocorrido na zona rural de Cocal, no Norte do Piauí (Foto: Reprodução)#PARATODOSVEREM  A imagem está dividida em duas partes. Lado esquerdo: Uma motocicleta preta está parada sobre um terreno de terra batida com grama rala. Sobre o banco da moto, há um tecido listrado em tons de laranja, preto e bege, que cobre parcialmente a moto, dando a impressão de que algo ou alguém está por baixo, mas a forma exata não é visível. O guidão da motocicleta está levemente inclinado para a direita. O chão apresenta pequenas folhas secas espalhadas e o ambiente parece ser externo, possivelmente um quintal ou terreno aberto à noite, iluminado por luz artificial. Lado direito: Mostra Francisco Igor, um homem jovem, de pele clara, aparece dentro de um carro, sentado no banco do motorista. Ele está sem camisa e olha concentrado para frente, com o olhar fixo na estrada. O fundo mostra uma janela do veículo com árvores e vegetação desfocadas em movimento, sugerindo que o carro está em deslocamento. A luz do dia entra pela janela, iluminando parcialmente seu rosto e ombros. FIM DA DESCRIÇÃO. 

 MESMO EMANCIPADO, MENOR DE 18 ANOS NÃO PODE TIRAR CNH

José Marlon, Francisco Igor e os demais adolescentes mortos nas rodovias estaduais e federais do Piauí sequer poderiam estar conduzindo motocicletas. De acordo com o Código Brasileiro de Trânsito, a idade mínima para iniciar o processo de habilitação é de 18 anos. A regra visa garantir que os motoristas tenham maturidade suficiente para assumir a responsabilidade de dirigir.

Nem mesmo os menores emancipados podem ter acesso a uma CNH, considerando que a emancipação concede ao menor de idade alguns direitos civis, como a capacidade de administrar seus próprios bens. No entanto, mesmo que um jovem seja emancipado, ele não pode obter a CNH antes dos 18 anos. A legislação brasileira é bastante clara nesse sentido: a idade mínima para iniciar o processo de habilitação é de 18 anos, independentemente do status de emancipação.

Os itens exigidos para tirar a CNH são rigorosos, visando garantir o mínimo de segurança no trânsito. No Piauí, essa observância torna-se ainda mais imprescindível, tendo em vista que o Estado tem a maior taxa de mortalidade por acidentes com motocicletas no Brasil, de acordo com o Atlas da Violência 2025, divulgado no primeiro semestre deste ano. Os dados são de 2023.

Ao todo, foram 21 óbitos por 100 mil habitantes, um índice 9,1 vezes maior do que o do Amapá, que teve a menor taxa do país (2,3).

Os indicadores são estarrecedores, já que 69,4% das mortes no trânsito no Piauí envolvem motocicletas, a maior proporção entre todas as unidades da federação, representando quase o dobro da média nacional, que foi de 38,6%. No cômputo geral, o Piauí registrou 1.001 mortes no trânsito em 2023, sendo 695 com envolvimento de motocicletas, um crescimento de 15,1% em relação ao ano anterior.

SOBRECARGA NO SISTEMA DE SAÚDE

No maior hospital de urgência do Piauí, o HUT, em Teresina, os ponteiros parecem avançar em ritmo frenético, movidos pela necessidade imediata de socorro, constatada diariamente. Na unidade, que recebe pacientes de todo o Estado, a cada 60 minutos, em média, é atendida uma vítima de acidente de moto. Os dados foram divulgados pela Fundação Municipal de Saúde (FMS) e estão vinculados aos 9.343 acidentados de moto atendidos em 2024. Além da dor para os familiares e dos impactos na vida das vítimas — muitas, inclusive, não conseguem ter uma “nova chance” — há uma grande demanda financeira para oferecer a assistência multidisciplinar que os casos exigem.

HUT, em Teresina, atende um paciente vítima de acidente de moto a cada 60 minutos (Foto: FMS)

#PARATODOSVEREM A imagem mostra o interior de uma ambulância do SAMU, com paredes brancas e assentos acolchoados na cor azul-clara. Sentada sobre um dos bancos, está uma profissional de saúde vestida com o uniforme do SAMU — macacão azul-marinho com faixas refletivas prateadas e listras verticais vermelhas nas mangas e nas pernas. No braço esquerdo, há o brasão do Brasil e o símbolo do serviço de urgência “SAMU 192”. A profissional usa touca descartável, máscara facial branca e luvas cirúrgicas. Ela está concentrada, manuseando um colar cervical branco e amarelo, retirado de uma grande bolsa vermelha aberta à sua frente. Dentro da bolsa, há diversos equipamentos de primeiros socorros organizados por cores — faixas, talas e cintas imobilizadoras. Ao fundo, há uma porta dupla fechada da ambulância, com detalhes em vermelho. Pendurada na parede, do lado direito, há uma bolsa vermelha com o logotipo do SAMU e uma rede com cabos e materiais médicos. FIM DA DESCRIÇÃO.

Nesse sentido, segundo uma pesquisa realizada em 2024 pela FMS, os acidentes de trânsito geram custos muito maiores ao hospital do que o valor pago pelo SUS. “Estamos aguardando o resultado desta pesquisa ser divulgado, mas já sabemos que há um grande descompasso entre o que o hospital gasta e o valor ressarcido pelas AIHs (Autorizações de Internação Hospitalar)”, afirma a diretora-geral do HUT, Aranucha Brito.

A profissional explicita o custo global do atendimento, que abrange, por vezes, períodos longos de internação. “O custo para atender uma vítima de acidente de moto varia conforme a gravidade do caso e o tempo de internação. Esses custos incluem despesas diretas, como internação, salários de profissionais, procedimentos cirúrgicos, medicamentos e materiais hospitalares, além de despesas indiretas, como impostos, água, energia, telefone e internet, entre outros.”

De acordo com o levantamento de indicadores do hospital, 43% dos pacientes atendidos no HUT são de outras localidades fora de Teresina. “Esse foi o percentual que encontramos, mas acredita-se que seja ainda maior, já que há relatos de que alguns pacientes de outros municípios fornecem endereços de familiares ou acomodações em Teresina. Isso demonstra que o hospital não atende apenas Teresina, sendo uma referência para todo o Estado do Piauí”, conclui Aranucha.

Além das mortes — que trazem um impacto social imensurável —, o diretor médico do HUT, Rogério Medeiros, aponta que esses acidentes podem resultar em graves sequelas. 

As lesões mais comuns incluem fraturas expostas e fechadas e traumatismos cranianos, que podem levar a lesões cerebrais permanentes. Muitos pacientes necessitam de atendimento contínuo e especializado, o que impacta suas vidas e a capacidade de retomar atividades cotidianas. É triste ver pessoas em idade produtiva com limitações físicas ou incapacidades devido a acidentes que poderiam ser evitados.