Revolução

Em busca da nova independência do Brasil

No Nordeste do Brasil, o Piauí cria a primeira Inteligência Artificial conversacional com o banco de dados integralmente em português. A SoberanIA é um grito de independência na nova ordem mundial.

Imagem principal sobre energias renováveis no Brasil
Piauí inova e cria a primeira inteligência artificial com banco de dados 100% em português do mundo. | Foto: Thanandro Fabrício

“Independência ou morte”, o emblemático grito de Dom Pedro I às margens do Ipiranga, simbolizou a Independência do Brasil — um marco na separação de Portugal e no início da construção de uma nação soberana. Passados mais de dois séculos, na nova ordem mundial, a soberania não é mensurada somente pelas fronteiras geográficas ou pelo aparato militar. Sua conquista é alcançada também no ambiente digital. E é justamente esse trajeto que o Piauí está traçando com a criação da SoberanIA, a primeira inteligência artificial com banco de dados integralmente em português, treinada para entender os nossos diferentes sotaques, os regionalismos — um “cérebro” que pensa com base na nossa realidade.

Desenvolvida com o Dataset Jabuticaba, uma base de dados curada que transmite os meandros culturais, jurídicos, sociais e linguísticos nacionais, a SoberanIA já está familiarizada com o “oxente”, o “vixe”, o “mermã”, o “pois não”. A IA criada pelo Piauí é um retrato da nossa gente, reconhecendo seu povo por completo e focando na ética, inclusão e segurança — sem que haja dependência de big techs, de tecnologias criadas por nações dominantes no cenário geopolítico e que manipulam infinitas informações dos cidadãos brasileiros sem conhecer qualquer limite territorial.

O Estado precisou adequar toda sua infraestrutura para viabilizar a IA (Foto: Thanandro Fabrício)

ESTRATÉGIA E INFRAESTRUTURA

Em um prédio na zona Sul de Teresina — capital do Piauí —, uma equipe de desenvolvedores, programadores, cientistas e matemáticos trabalha para garantir o sucesso da SoberanIA. O processo é cercado de sigilo para evitar ataques cibernéticos. Enquanto nossa reportagem acompanhava os trabalhos, alguns alertas soaram no painel de monitoramento — vinham da Arábia Saudita, do outro lado do planeta.

Para criar a IA, o Piauí precisou se estruturar. Foi um começo praticamente do zero para um estado que ainda mantinha práticas comunicacionais arcaicas. Máquinas de última geração foram adquiridas, profissionais especializados foram contratados, criou-se uma Secretaria de Inteligência Artificial e uma empresa pública de tecnologia, e construiu-se um ambiente voltado à cultura digital.

Entre as aquisições estão supercomputadores com 6 TB de RAM, 960 GB de VRAM e 175 mil núcleos CUDA. De acordo com o presidente da Etipi (Empresa de Tecnologia da Informação), Ellen Gera, “a Etipi entra fornecendo infraestrutura de processamento e também armazenamento de dados”. A ideia é montar uma base sólida de dados públicos, garantindo total conformidade com a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), já com 97% de aderência.

Hoje, o governo está se preparando para ter, em seu data center, supercomputadores capazes de realizar treinamentos e inferências com IAs... A gente terá uma IA treinada com o conhecimento da cultura brasileira e piauiense, especializada no conhecimento do poder público, com o objetivo claro de melhorar a qualidade do serviço público com o apoio da IA.

Ellen Gera é o presidente da ETIPI, empresa de tecnologia criada pelo Governo local (Foto: Raíssa Morais/MeioNews)

UMA ESCOLHA POLÍTICA E ESTRATÉGICA

O surgimento da SoberanIA não foi por acaso. Sua construção atendeu a um pedido direto do governador Rafael Fonteles ao secretário de Inteligência Artificial, André Macedo, responsável por coordenar o projeto com uma visão ampla de integração entre governo, academia e iniciativa privada.

Não é simplesmente um ponto: ‘crie uma IA’. Nós temos hoje um processo, que a gente fala que o caminho dessa nossa IA foi todo traçado e pensado para que a gente pudesse... lançar um projeto estratégico.

Segundo o secretário, “o desafio é ter uma IA com a mão do governo, que vai garantir a segurança dos dados do cidadão”. Para isso, a estrutura pública de TI está sendo reforçada com servidores concursados e capacitação técnica.

SoberanIA tem o desafio de tornar a gestão pública independente das grandes bigh techs (Foto: Thanandro Fabrício)


Matemático, mestre pelo IMPA e vencedor de inúmeras Olimpíadas no Brasil e no exterior, o governador Rafael Fonteles entende o quanto a SoberanIA é importante para uma nação, para a conquista de uma nova independência e para a consecução de um futuro livre e autônomo.

É papel do governo induzir os setores econômicos, e um dos que eu acho mais importantes para o desenvolvimento de um lugar é a economia digital, dado que vivemos na era do conhecimento, da inovação e da tecnologia.

Rafael Fonteles e Luciana Santos assinam termo de cooperação técnica para implantação da SoberanIA (Foto: Renato Braga)

Em maio, Fonteles assinou um termo de cooperação técnica com o Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI) para o desenvolvimento da iniciativa. Na ocasião, a líder da pasta federal, Luciana Santos, ressaltou o papel da SoberanIA no Plano Nacional de Inteligência Artificial.

"A inteligência artificial veio para isso, mas ela precisa ser brasileira, ser nossa. O Piauí tem dado uma grande contribuição e vai estar entre as nossas prioridades do Plano Brasileiro de Inteligência Artificial”, cravou.

LINGUAGEM COMO POLÍTICA PÚBLICA

André Macêdo é o secretário de Inteligência Artificial (Foto: Raíssa Morais/MeioNews) 

Divergindo das grandes IAs comerciais, como o ChatGPT, a SoberanIA nasce com a missão de utilizar os dados do cidadão para servir aos seus interesses — e não para a obtenção de lucro. A decisão de usar a língua-mãe é uma questão de pertencimento e autodeterminação.

“A grande massa textual do mundo não é em português. O que a gente fez? A gente tem que requalificar essas IAs para poder ter essa característica de português", afirma Macedo.

“A ideia é que... vamos catalogar cada vez mais dados para que ela aprenda mais sobre o nosso português", completa.

GOVERNO CONVERSACIONAL E INTELIGÊNCIA CIDADÃ

Muito além da automação dos serviços públicos, a IA made in Piauí propõe a construção de um governo conversacional, capaz de detalhar a agenda e organizar atendimentos, facilitando a vida do cidadão sem que ele precise sair de casa. Macedo exemplifica:

Imagina uma IA poder te dizer: ‘Tua agenda dessa semana dos serviços do governo é...’. O que a gente espera é um governo conversacional.

Diante da imensidão de informações disponíveis, por exemplo, no Sistema Único de Saúde (SUS), o objetivo é que os dados sejam usados em benefício do cidadão, com proteção e sem exposição a outros órgãos ou empresas com fins comerciais.

“Esse é o princípio de soberania: manter a integridade dos dados e garantir que esses dados só serão utilizados por uma IA de propósito público, para a prestação de serviços", defende o secretário.

O projeto é repleto de 'segredos' para evitar ataques de hackers (Foto: Thanandro Fabrício)

UM PROJETO COM AMBIÇÃO INTERNACIONAL

A SoberanIA não é um projeto restrito ao Piauí. O alinhamento ao Plano Brasileiro de Inteligência Artificial, e o interesse do Governo Federal em abraçar o projeto é uma prova. Segundo Macedo, a ministra Luciana Santos chegou a afirmar que “o melhor projeto que ela viu nesse plano foi o desenvolvimento da LLM piauiense".


A ideia é que a IA criada no Nordeste do Brasil também se torne referência para outras nações de língua portuguesa, como Cabo Verde, Moçambique e Angola. Gera explica: “Ao treinar uma IA com esse acervo, ela se torna mais ‘íntima’ do nosso modo de falar. Ela vai reconhecer termos, expressões, sotaques — entre aspas — que são nossos”.


DO POWERPOINT PARA O MUNDO REAL

O foco está na execução e na garantia da efetividade da IA brasileira, para que o país não permaneça dependente de tecnologias dos Estados Unidos ou da China. Macedo conclui: “A gente tem que sair do PowerPoint e trazer para o caso concreto. O que a gente defende é que várias iniciativas individuais não são melhores do que uma orquestrada em conjunto”.

O projeto pode ser abarcado pelo Governo Federal (Foto: Thanandro Fabrício)

INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL INEXISTE SEM A MATEMÁTICA

"Quem começou a trabalhar com inteligência artificial foram os matemáticos." A frase é da professora da USP e pesquisadora em IA, Solange Rezende, em artigo à UFMG. Estudando o tema há quatro décadas, ela é referência e deixa claro que não existiriam os atuais modelos sem a matemática.

Aliás, a IA não é uma invenção recente. Ela surgiu na década de 40, com a criação do primeiro modelo computacional para redes neurais, apesar de que o termo em si foi popularizado apenas em 1956, durante a Conferência de Dartmouth, pelo matemático e cientista John McCarthy.

Matemático e cientista John McCarthy cunhou o termo 'inteligência artificial' (Foto: Artificial Intelligence Institute)

A IA generativa — aquela que produz vídeos, fotos, textos — é a mais recente. Inclusive, você certamente já se deparou com ela em algum momento, seja em esquetes popularizadas nas redes sociais, como do programa Marisa Maiô, seja na simples utilização do ChatGPT para realização de resumos. Sem contar as trends que viralizam no Instagram, em que fotos reais são transformadas em desenhos ou quadros. Tudo isso é IA.

A SoberanIA, do Piauí, é uma IA conversacional, que utiliza um chatbot e reage a partir da interação do humano, utilizando uma base de dados robusta, machine learning e processamento de linguagem natural, gerando respostas de forma natural e que simulam uma conversa "corriqueira".

Operacionalizada pelo Instituto de Tecnologia (PIT), a SoberanIA busca dar uma identidade brasileira ao mercado de IAs, viabilizando uma autonomia tecnológica.

“A SoberanIA é mais que uma ferramenta tecnológica, é um projeto de identidade, de autonomia e de futuro. É a inteligência artificial olhando para o Brasil a partir do Brasil”, destaca o presidente do PIT, Cristiano Vargas.

Usando o “piauiês”, respeitando nossos diferentes sotaques e com espírito coletivo, a SoberanIA quer ser mais que uma tecnologia: quer ser um ato de independência digital brasileira.