“Os retirantes vêm vindo com trouxas e embrulhos/ Vêm das terras secas e escuras; pedregulhos/ Doloridos como fagulhas de carvão aceso/ Corpos disformes, uns panos sujos/ Rasgados e sem cor, dependurados/ Homens de enorme ventre bojudo/ Mulheres com trouxas caídas para o lado/ Pançudas, carregando ao colo um garoto/ Choramingando, remelento/ Mocinhas de peito duro e vestido roto/ Velhas trôpegas marcadas pelo tempo”
As palavras do poema Deus de violência criam imagens fortes diante dos olhos do leitor. É possível imaginar cada uma das personagens, com seus corpos fora da ordem, carregando no lombo a miséria implacável provocada pela seca. De tão visuais, os vocábulos mais parecem pinceladas que formam um quadro de delicado impacto social. A relação entre pintura e literatura dessa obra não é à toa. O poema em questão é de autoria de Cândido Portinari (1903-1962), o grandioso artista plástico que deu forma e cores às mazelas dos brasileiros em telas e murais, como os painéis icônicos Guerra e Paz, expostos na sede da Organização das Nações Unidas (ONU), em Nova York.
Mesmo após 55 anos da primeira publicação pela Editora Olympio, a produção poética de Portinari soa como novidade. Ainda é uma faceta pouco conhecida de um dos maiores artistas brasileiros do século 20. Agora, ganha reedição comemorativa ainda neste semestre, em uma parceria entre o Projeto Portinari, que completa 40 anos de atividades, e a Fundação Nacional de Artes (Funarte), instituição vinculada ao Ministério da Cidadania.
“A obra poética de meu pai é um espelho da obra plástica. É menos conhecida do público brasileiro porque as duas edições eram limitadas, perdendo-se, com o tempo, essa memória. Acredito que os poemas complementam o legado plástico e se constituem como uma fonte de informação para o maior entendimento da obra”, avalia o professor, matemático e guardião do acervo Portinari, João Candido.
Poemas estão relacionados com produção iconográfica
Com o título Poemas de Portinari, a edição da Funarte nasce do sonho de pôr em diálogo a produção poética com a plástica. Na época, o criador não quis nenhuma espécie de ilustração de sua obra porque não queria se aproveitar da fama de pintor para impulsionar o surgimento do poeta. Sobre essa postura ética, poetizou: “Quanta coisa eu contaria se eu soubesse da língua o que sei das cores”.
“Agora, pedimos licença a Portinari para poeticamente desobedecê-lo. Os poemas estão relacionados com a sua produção iconográfica”, revela o gerente de Edições da Funarte, Oswaldo Carvalho, que está extasiado com a editoração do livro: “Está muito caprichada e já foi encaminhada à gráfica. Terá uma tiragem de 2 mil exemplares (uma metade será doada a bibliotecas pública e a outra vendida a R$ 50)”, adianta.
Prefácio de Bandeira e Antonio Calado foram preservados
Coordenadora do Núcleo de Arte-educação e do Livro da Fundação Portinari, Suely Avelar acalentava há tempos essa possibilidade, quando as pesquisadoras de literatura Patrícia Ferro e Letícia Porto procuram o Projeto Portinari para propor uma nova edição, que foi aceita imediatamente pela Funarte. “Vamos publicar nesta edição manuscritos de poemas, alguns com rabiscos de correções e um desenho ao lado sobre os retirantes, além de um datilografado em homenagem à poetisa norte-americana Emily Dickson”, adianta Suely.
Os prefácios originais de Manuel Bandeira e Antonio Calado foram preservados, além da organização em três lotes de poemas: O menino e o povoado (sobre as reminiscências na cidade Brodósqui/SP), Aparições (mais subjetivos e existências) e A revolta (de cunho social). Coube ao presidente da Academia Brasileira de Letras e um dos poetas mais intrigantes de sua geração, Marco Lucchessi, prefaciar essa nova edição.
“É um livro fulgurante. As imagens não ilustram ou estão subordinadas ao poema. Ao contrário, um ilumina o outro. A poesia de Portinari traz uma digital específica, tem antenas muito sensíveis para o seu tempo e a percepção que do escândalo da injustiça social se faz arte apontando não só para a denúncia em si, mas para a poética contida nessa denúncia”, avalia.
Coerência entre fluxos literárias e o plástico
A poesia que Candido Portinari criou no fim da curta vida de 58 anos foi a melhor expressão verbal de sua obra plástica. O poema Deus da violência flui como um afluente para a obra-prima Os retirantes (1944). Há uma coerência entre os fluxos literário e o plástico. Quando foi tomado pelo desejo de escrever, o pintor estava mergulhado por uma forte melancolia. Os médicos tinham proibido que ele continuasse a manipular as tintas que viriam a envenená-lo e levá-lo à morte pouco tempo depois.
“Nessa época, ele faz a histórica série de desenhos sobre papel cartão de Dom Quixote. Ele acordava e pintava até quando tivesse luz natural. Depois, antes de dormir, produzia as poesias”, lembra-se João Cândido, revelando a forma harmoniosa de convivência com as duas linguagens.
Manuel Bandeira, Candido Portinari e Carlos Drummond de Andrade
O valor artístico da produção poética de Portinari foi atestado por Manuel Bandeira, Antonio Callado e Carlos Drummond de Andrade, que dizia que “Candinho”, como carinhosamente era chamado, tinha “o traço de ser mais amigo dos poetas do que dos pintores”. Basta citar que Portinari pintou os retratos de Mario de Andrade, Manuel Bandeira, Murilo Mendes, Jorge de Lima e Adalgisa Nery, entre outros modernistas. De Drummond, ganhou esses versos, quando ele ficou diante das poesias do pintor: “Na mágica de dezembro/Portinari, pintura, poesia/ abraçam-se contudo um sonho único e real”. (Ascom Ministério da Cidadania)