A Mostra de Cinemas Africanos, com curadoria de Ana Camila e Beatriz Leal, entra em sua quarta edição, desta vez no CineSesc em São Paulo, de 10 a 17 de julho. Durante uma semana, o público poderá conferir uma cuidadosa seleção de filmes africanos e afrodiaspóricos reconhecidos em grandes festivais e respaldados pela crítica e públicos internacionais.
Com o objetivo de mostrar a explosão de riqueza, criatividade e diversidade na última década de uma cinematografia com um pouco mais de meio século de vida, a Mostra reúne 23 títulos procedentes de 14 países, com atenção especial à produção contemporânea. A maioria dos filmes é inédita no Brasil ou em São Paulo, chance rara de assistir a importantes produções que circularam em grandes festivais e talvez nunca cheguem ao circuito comercial do Brasil. Ao total, são 15 longas e 9 curtas de ficção e documentário projetados no CineSesc.
A sessão de abertura contará com o longa-metragem Supa Modo, do diretor queniano Likarion Wainaina, uma produção Quênia/Alemanha. Por sua delicadeza, ternura e maestria narrativa, é favorita do público internacional por sua declaração de amor ao cinema através da história de uma garota de nove anos com uma doença terminal que sonha em ser uma super-heroína. A sessão acontece em parceria com o Goethe-Institut, no dia 10 de julho, às 20h30, com entrada gratuita.
A Mostra de Cinemas Africanos se estabelece como um evento itinerante que coloca o Brasil na rota de circulação dos cinemas produzidos na África e sua diáspora. O evento possibilita que o público brasileiro acompanhe anualmente os lançamentos da cinematografia do continente e que crie repertório sobre ela. Nesta edição em São Paulo, a Mostra ganha um catálogo com apresentação dos filmes e debates com especialistas de renome internacional, sendo mais uma forma de incentivar a produção de conhecimento sobre um cinema inovador, original e com narrativas as mais diversas.
CURADORIA DESTACA PROTAGONISMO FEMININO
A proeminência das mulheres na programação da Mostra reflete o crescimento exponencial no século 21 de filmes realizados por mulheres na África e na diáspora. As jovens diretoras africanas dominam gêneros tão heterogêneos como a comédia adolescente (Kasala!, da nigeriana Ema Edosio), a ficção científica afrofuturista (Afronautas, de Nuotama Bodomo, e Pumzi, de Wanuri Kahiu), o curta-metragem poético (Irmandade, da tunisiana Meryam Joobeur), o ensaio autobiográfico (Lua Nova, de Philippa Ndisi-Hermann) ou o melodrama experimental (Ame Quem Você Ama, da sul-africana Jenna Bass).
Outras cineastas optam por usar o cinema como ferramenta de denúncia e espaço de abertura de diálogo, sem deixar de lado o entretenimento. É o caso do último trabalho de Wanuri Kahiu, Rafiki, que apresenta através de uma história de amor lésbico a perseguição à comunidade LGTBQI no Quênia; de Sofia (de Meryen Benm’Barek-Aloïsi) um melodrama social centrado na situação vulnerável da mulher violentada no Marrocos (ganhadora em Cannes do Prêmio de melhor roteiro no Un Certain Regard), ou o poderoso documentário sobre a força do ativismo para se opor a práticas de extração neocoloniais na Libéria (A Luta de Silas, de Hawa Essuman e Anjali Nayar).
HOMENAGEM A DJIBRIL DIOP MAMBÉTY
Em reconhecimento aos pioneiros dos cinemas africanos, serão projetados dois longas de ficção do senegalês Djibril Diop Mambèty (1946-1998), tio de Mati Diop, primeira diretora africana negra a competir pela Palma de Ouro no último Festival de Cannes. De Mambéty, autor iconoclasta, irreverente e controverso, Touki Bouki (1973) e Hyènes (1992) são dois clássicos universais que serão exibidos em cópias recentemente restauradas e que ainda hoje ressoam por seus temas, mensagens e estilos cinematográficos.
ATIVIDADES PARALELAS
Durante uma semana, a Mostra de Cinemas Africanos promoverá quatro sessões comentadas, sempre com especialistas e críticas de cinema. Receberemos as pesquisadoras Lúcia Monteiro, Kênia Freitas, Alessandra Meleiro e Jusciele Oliveira, que mediarão bate-papos com a plateia de filmes selecionados (ver programação). Teremos também uma edição do Cinema da Vela, onde as curadoras Ana Camila e Beatriz Leal, acompanhadas de Lúcia Monteiro e Jusciele Oliveira, conversarão sobre a desconstrução de estereótipos nos cinemas africanos contemporâneos. Pesquisadora e curadora de diversos festivais no mundo, Beatriz Leal oferecerá também o curso “Cinemas Africanos em Perspectiva”, com o objetivo de contextualizar esta cinematografia para o público interessado.
NARRATIVAS URBANAS, IMAGINÁRIOS OUTROS E CULTURAS DIVERSAS
Com uma curadoria que ressalta a diversidade de gêneros e formatos dos cinemas africanos, a Mostra destaca em sua programação as experiências do cotidiano em grandes cidades africanas, absorvidas por culturas diversas que criam imaginários outros do continente através do cinema, com inovação e originalidade.
Servindo-se dos meios da poderosa indústria de cinema sul-africana, Michael Mathews e o nigeriano radicado na África do Sul Akin Omotoso nos estimulam a pensar sobre os caminhos da sociedade sul-africana pós-apartheid. O primeiro com uma estimulante alegoria em formato western (Five Fingers for Marseilles, Michael Matthews,) e o segundo através de um drama baseado em histórias reais de pessoas em situação de rua em Joanesburgo (Vaya, de Akin Omotoso). Já na região do Magrebe, temos uma história íntima e compassiva de um pai que reavalia sua vida ao se reencontrar com seu filho que abandonou do outro lado do Mediterrâneo (Look at Me, de Néjib Belkadhi). O longa, exibido no Festival de Berlim 2019, é um bom exemplo da força da indústria cinematográfica da Tunísia.
Diante do conjunto de heróis revolucionários de carne e osso que estiveram à frente das independências na África, o imaginário atual dos jovens africanos é composto por heróis dos quadrinhos e do cinema. Além de Supa Modo, outros filmes trazidos pela Mostra oferecem um panorama desses imaginários. Samantha Biffot nos revela, no documentário O Africano que Queria Voar, o gabonês Luc Bendza, primeiro campeão negro de wushu da história. Sua paixão pelo Kung Fu o levou a seguir os passos dos seus heróis na ficção (Bruce Lee e Wag Yu) e voar para a China para realizar seu sonho e acabar trabalhando com Jackie Chan nas telonas. O burquinense Cédric Ido, residente na França, completa esse quadro de referências com o instigante As Espadas, usando a linguagem das artes marciais para refletir sobre o futuro do planeta, também em uma perspectiva afrofuturista.
O papel da música como ingrediente da identidade cultural e como espaço expressivo íntimo e de interação social são os fios que unem os documentários Bakosó – O Afrobeats de Cuba e A Dança das Máscaras com o média-metragem Nora. Coreógrafa e bailarina de fama internacional, Nora Chipaumire volta ao seu país (Zimbábue) para compor um relato autobiográfico dançado, de imensa força comunicativa. De Moçambique, país vizinho, A Dança das Máscaras (Sara Gouveia) nos apresenta a Atanásio Nyusi, conhecido por sua destreza na dança tradicional Mapiko e nos força a refletir sobre a história do país desde a colonização. Bakosó, de Eli Jacobs-Fantauzzi, nos coloca em contato com um novo estilo musical afro-cubano que está dominando as ruas de Cuba, fruto da abertura internacional do país e das possibilidades de conexão com a ancestralidade africana.
Por fim, o curta-metragem, formato inovador especialmente querido pela nova geração de realizadores africanos, ocupa um lugar destacado na Mostra com duas sessões temáticas: uma centrada no movimento do Afrofuturismo, e outra sobre as histórias íntimas mulheres e homens jovens nas cidades contemporânea da África e da diáspora. Estas novas vozes e narrativas de juventude transmitem a pulsão de um continente onde a média da população não chega aos 20 anos, e cuja explosão demográfica está apenas começando.
SOBRE AS CURADORAS
Ana Camila (Brasil) é natural de Salvador-BA, bacharel em Jornalismo pela Universidade Federal da Bahia, mestre e doutoranda em Comunicação e Cultura Contemporâneas pela mesma universidade. No mercado da cultura desde 2009, atua na área de planejamento estratégico em comunicação e no desenvolvimento, criação, coordenação e execução de projetos culturais e corporativos. Como pesquisadora, atualmente cursa o doutorado na UFBA, onde estuda as narrativas do urbano nos cinemas africanos. Membro do grupo de pesquisa Laboratório de Análise Fílmica, sua pesquisa tem foco na relação entre CINEMA e CIDADE, tendo os cinemas da África como objeto. Curadora parceira do Africa in Motion Film Festival (Escócia), idealizadora e curadora da Mostra de Cinemas Africanos (Brasil).
Beatriz Leal Riesco (Espanha) é pesquisadora, professora, crítica e curadora especializada em arte e cinema contemporâneos da África, Europa e Oriente Médio. Combina seu trabalho como conferencista e professora com a escrita jornalística e acadêmica em publicações como El País, Cinema Journal, Secuencias, Caracteres, Ars Magazine, Asymptote, Hyperion, Rebelión, Okayafrica y Écrans. Com residência entre os EUA e a Europa, desde 2011 é programadora do New York African Film Festival e África Imprescindible (Espanha). Co-fundadora do Wallay Festival de Cinema Africano de Barcelona (2018), já foi júri em vários festivais internacionais de cinema. Como curadora independente já trabalhou com centros de arte contemporânea reconhecidos internacionalmente como Artium, Azkuna Zentroa, CCCB, Tabakalera, MUSAC, e La Virreina Centre de La Imatge, assim como para cinematecas como Filmoteca de Navarra, Filmoteca Española, Filmoteca de Catalunya, entre outras.